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Bolsonaro e seu presidencialismo de colisão

Valterlucio Bessa Campelo


Desde a redemocratização, conforme diagnosticou o notável sociólogo Sergio Abranches já em 1988, o Brasil é governado sob um regime que ele denominou de presidencialismo de coalizão, que em seu próprio dizer “envolve três momentos típicos. Primeiro, a constituição da aliança eleitoral, que requer negociação em torno de diretivas programáticas mínimas, usualmente amplas e pouco específicas, e de princípios a serem obedecidos na formação do governo, após a vitória eleitoral. Em segundo, a constituição do governo, no qual predomina a disputa por cargos e compromissos relativos a um programa mínimo de governo, ainda bastante genérico. Finalmente, a transformação da aliança em coalizão efetivamente governante, quando emerge, com toda força, o problema da formulação da agenda real de políticas, positiva e substantiva, e das condições de sua implementação”. É a partir daí que refletimos.


Ora, a eleição de Bolsonaro, assim como a de Fernando Collor, se deu negando esse roteiro. Nas últimas eleições não houve aliança anterior ao pleito. Ele foi eleito de modo quase avulso, com uma sigla nanica, sem o tempo de televisão e os recursos financeiros que muitas vezes azeitaram a formação de chapas, sem apoio de grandes partidos e sem um grande elenco de parlamentares orbitando em volta, o que implica uma grande dose de personalismo, autonomia e destituição de laços programáticos. 


Sem pretensões sociológicas, parafraseio o grande escritor brasileiro para dizer que a eleição foi vencida pela colisão de Bolsonaro com o Sistema, ou seja, com o politicamente correto, a imprensa, corporações, empresariado, grandes partidos e bancadas, tendo como aríete um discurso moralista e antissocialista e um modo -09-p cvki beligerante (grosserias, insultos e enfrentamentos). A colisão bolsonarista aprofundou e mantém a fratura pré-existente na sociedade brasileira. Na esteira, o PSL, que tinha apenas um deputado, elegeu mais de 50, colhendo uma espécie de safra parlamentar amorfa, da qual fazem parte seres tão díspares quanto o Príncipe Luiz Philippe de Orleans e Bragança e o Nelson Barbudo.


Se, como vemos na interpretação de Abranches, o governo se forma a partir da coalizão que ganhou as eleições, o que significa estabelecer uma liderança ampla representante de várias nuances partidárias, inversamente, vencer as eleições “sozinho” de certo modo libera o vencedor da segunda fase, ou seja, da formação de uma coalizão para constituir o governo. Se a colisão deu certo para vencer, por que seria alterada para formar o governo? Foi o que aconteceu.


Bolsonaro não deu a mínima para os partidos e parlamentares no momento de nomear seus ministros e presidentes de estatais, não houve partilha de poder e isto firmou seu isolamento político. Nenhum partido, nem o dele próprio, tem condições de se dizer protagonista no governo. Este papel, Bolsonaro guardou para si mesmo e, em alguma medida, para militares com os quais estabeleceu uma relação visceral. Na formação mesma do governo, novamente, Bolsonaro colidiu com os partidos e o sistema político.


Chegamos à terceira fase proposta por Abranches, que é a rotina de governar, de fazer o país andar, de administrar o orçamento, estabelecer prioridades, realizar reformas. Neste sentido, todo governo requer negociação e aprovação legislativa. Muitos PL’s e MP’s precisam ser aprovadas, medidas administradas precisam de apoio, é preciso negociar com corporações e obter a boa vontade da imprensa, enfim, governar é uma função complexa. Lembremos que foi isso que fez Lula seguir o conselho de Zé Dirceu e trazer vários partidos para sua base a qualquer custo. O mensalão surgiu sob essas circunstâncias – governar é preciso e a coalizão de esquerda que o elegeu era insuficiente para promover as mudanças que propunha, então Lula foi ao mercado. Apesar disso tudo, Bolsonaro governa em colisão, não estabelece alianças firmes e duradouras e terceiriza negociações como no caso da Reforma da Previdência.


Tal raciocínio leva a uma indagação. Como obter apoio parlamentar sem uma coalizão política, sem uma interface positiva com o Congresso, sem um diálogo competente e sem ir ao mercado? Bolsonaro acha que se basta, que suas medidas falam por si próprias, que seus projetos se justificam por si mesmos, então, os parlamentares que façam seu papel e as aprovem ou arquem com as consequências. Ele se elegeu e formou o governo em colisão política e ainda não mudou o tom no exercício do poder. 


O governo Bolsonaro segue até aqui um rito singular, mas profícuo. Reconheçamos, o país está melhorando. A reforma da previdência foi aprovada, a economia está se abrindo para novos mercados, os indicadores de violência estão em queda importante, os empregos estão voltando, a confiança do empresariado aumenta, a classificação de risco do país tem significativas melhoras, a bolsa de valores bate recordes de pontos, os juros caem seguidamente, a inflação está em baixa, muitos investimentos em infraestrutura estão sendo realizados, as privatizações estão em curso, enfim, a vida segue em ritmo que ajuda a pensar se, de fato, não era exatamente isto que o Brasil precisava, ou seja, um governo que colidisse com todo o sistema, que enfrentasse o status quo e buscasse a construção de um novo caminho, ainda que, com o desprestígio do sistema político, adquira um certo viés autoritário. 


De qualquer modo, a permanente colisão política, estratégica para a vitória eleitoral num tempo de antipetismo escrachado, se transformada em um antagonismo exacerbado, incluindo aí os arroubos sempre rasteiros dos filhos, tende a descambar para a antipolítica, o que é bastante grave e arriscado. Há muito ainda a ser feito, leis e reformas fundamentais estão na agenda, forçando amplas negociações e recomendando prudência.




 


 


Valterlucio Bessa Campelo escreve todas às sextas-feiras no ac24horas.