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A Insolência dos Barnabés Sangue Azul

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A publicação abaixo já tem dez anos; ela é de 13 de julho de 2009 e foi feita no Jornal a Gazeta do Acre.


A publicação do texto possui desconfortante atualidade com um Brasil democrático e atônito que clama por uma lei de proteção de seus cidadãos contra o arbítrio abusivo da maioria das autoridades de Estado.

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Com alguma paciência, esperei mais de onze meses para expor minha versão dos acontecimentos dos idos de julho de 2008, em Brasileia-Epitaciolândia. Não posso negar o incômodo de um debate feroz entre as instâncias da minha consciência, no qual umas sugeriam que eu devia aquietar-me enquanto outras consideravam meu silêncio nada mais de que o medo das cruéis e afiadas garras e da horripilante fisionomia do Leviatã, codinome dos aparelhos repressivos da Receita Federal e da Polícia Federal do Brasil. Em todo caso, superei esse debate, tirando-o do meu pensamento, mesmo com o risco evidente da ousadia, não sem antes, como é do meu feitio, assumir toda e qualquer responsabilidade por cada letra grafada nesse texto.


Aquela quarta-feira, 23 de julho de 2008, prometia ser um dia bem especial. Pela primeira vez, depois do Ano Novo, nossa família direta reunir-se-ia, em nossa casa, lá pelas oito da noite. Além da Iara, Joema, Heitor, Marinez e eu, também contávamos com a presença da Liz, agora enquanto noiva do Heitor. Naquele remoto tempo de dólar barato e paz na Bolívia, levei-os (Liz e Heitor) a Cobija, cedo do dia, para chegarmos com folga às oito da noite ao nosso ansiado encontro. Em Cobija marcamos hora para a volta e fiquei assuntando com os taxistas acerca do “referendum“, proposto por Evo Morales, que poderia aprofundar, ainda mais, a crise boliviana. Também encontrei antigos amigos n’algumas lojas em que comprei milacrias. Às quatro da tarde, chegamos ao Posto Alfandegário da Receita Federal em Epitaciolândia debaixo de um sufocante calor porque o Astro Rei, O Guaraci, desobediente como é, insistia em mandar calefação para as três da tarde; uma fina camada de poeira em suspensão em céu aberto completava um incômodo quadro.


É certo que me preveniram, mais de uma vez, da indigência das instalações da Receita Federal e dos constantes maus tratos e humilhações infligidos por seus servidores aos cidadãos acreanos. Talvez os tenha subestimado porque “ o que os olhos não vêem o coração não sente “. Descendo do carro, no entanto, deparamo-nos com uma enorme fila formada morro acima, exposta à poeira e ao sol inclemente, movendo-se letargicamente, tendo que passar por duas mesas de plástico, carunchentas e sujas, que serviam de base ao preenchimento das declarações de compra das mercadorias, feitas com canetas igualmente sujas, com os fundos esfrangalhados, presas com uns cordões de amarrar patos.


Como qualquer cidadão desejoso de sair logo dali, entrei na fila e aguardei pacientemente a minha vez. Quando ela chegou, entre mim e o cortiço plantava-se uma porta com um trinco “tomara que caia“; não havia porteiro. Levei a mão ao trinco e empurrei a porta para adentrar o recinto. Fui surpreendido com uma agradável lufada de ar condicionado acompanhada de um grosseiro grunhido do atendente da Receita Federal: “Feche essa porta! Espere ai fora!“. Fiquei meio atarantado e envergonhado talvez porque não fale assim com ninguém e nem tenha o costume de que falem assim comigo. Obedeci-lhe, fechei a porta e esperei do lado de fora por uns minutos enquanto temia abri-la novamente e levar um novo carão.


Pensava na gratuidade daquela agressão quando a porta foi aberta e a mesma voz, menos agressiva, bradou: “ o próximo!”. Entrei no cortiço, agradável pelo forte ar condicionado, e postei-me, de pé, declaração e notas fiscais em mão, diante de um jovem euro-descendente, de pele clara, franzino, de óculos, que evitou olhar-me porque estava ao telefone em animada conversa. Decorridos quatro ou cinco minutos, curvei-me e assinei a declaração, enquanto ele continuava sua conferência. Quando finalmente ele olhou-me, disse-me: “o senhor assinou no lugar errado!”. Sim, mas, e aí? O que o senhor acha que devo fazer? Indaguei- lhe. “O senhor tem que voltar para a fila, preencher certo e voltar aqui“, respondeu-me, friamente. Ele sabia bem mais do que eu que naquela altura do dia a fila estava mais que duplicada (eles só atendem até cinco da tarde).


Pensei muitas coisas, em frações de segundo, dentre elas pegar as mercadorias e simplesmente ir embora, aliás como muitos têm feito para evitar essas corriqueiras humilhações, pensei na Liz e desisti; poderia voltar à Bolivia e guardar as compras em lojas conhecidas para buscá-las posteriormente, pela Liz novamente declinei. Qualquer que fosse a decisão, sabia que não conseguiria sair dali sem manifestar o meu desagrado, a minha irresignação, ao achincalhe promovido por indivíduos pagos, e nem sempre mal, com o dinheiro do contribuinte. Então comecei: “vocês não têm o direito de fazer o que estão fazendo; esta não é a forma correta de tratar a população; vocês devem respeitar o povo acreano …”. Fui bruscamente interrompido por um outro serventuário da Receita Federal, plotado na extrema esquerda do balcão do cubículo, um afro-descendente de pele escura (há, também, afro-descendentes de pele morena e de pele clara) que levantou-se abruptamente e, em tom intimidatório, dirigiu-se a mim, aos gritos e com o dedo em riste: “O que está havendo aí? Que palhaçada é essa? Baixe o tom de voz! Baixe o tom de voz!”. Respondi-lhe, em tom equivalente, que, “o que está havendo é que vocês têm de respeitar o povo acreano; que estas pessoas maltratadas e humilhadas ali fora e aqui dentro são as que pagam os salários de vocês e que você tire o dedo da minha cara que eu não sou bandido“. Sua resposta foi seca e imperativa: “fulano, chame a Polícia Federal pra prender esse cara…e chame a Polícia Militar“. Disse-lhe por fim: “pode chamar quem você quiser, estou no meu direito de cidadão“. Pensei, erradamente, que ele seria respeitado. Enquanto isso, uma criança prendeu o dedo no trinco-armadilha da porta e pôs-se a gritar de dor.


As coisas ficaram calmas, deixei as notas fiscais com o primeiro atendente e fui enfrentar a fila que serpenteava ainda maior com o afluxo de novos adeptos, no intuito de reescrever e assinar a declaração “no lugar certo”. Quando chegou novamente a minha vez, observei uma espécie de porteiro guardando a porta e ao entrar havia um soldado da Polícia Militar no recinto. Nenhum dos dois funcionários com os quais discutira encontrava-se no lugar e dirigi-me a uma terceira pessoa. Ao apresentar-lhe a declaração preenchida com a assinatura no “lugar certo“ ele a ignorou com enfado e disse- me que, no meu caso, todas as mercadorias deveriam ser apresentadas.


Como era um procedimento singular, deduzi que havia sido escolhido para ser objeto da vingança do ressentimento e da prepotência dos funcionários da Receita Federal. Voltei ao carro, acompanhado de meu filho e noiva, e reviramo-lo de cima a baixo a localizar as milacrias- quinquilharias que eu havia comprado; apresentei-as ao serventuário que, agora, alegou-me estarem faltando as notas fiscais. Lembrei-lhe que as havia entregue logo ao primeiro contato. Na verdade, eles haviam-nas surrupiado ou escondido para, com o ardil, dar tempo à Polícia Federal chegar para prender-me. Percebi a manobra e veio-me à lembrança a incômoda verdade contida no aforismo do escritor Victor Hugo: “uma sociedade de carneiros acaba por gerar um governo de lobos“. Sem DNA ovino e com a vida inteira de lutas contra governos de lobos, soube, também ali, de que teria problemas adicionais.


Nesse ínterim, enquanto o serventuário da Receita Federal fingia procurar as notas fiscais que eles haviam escondido, fiquei de pé diante dele, silencioso, esperando o resultado. Meu filho, mercê da fortuna, havia saído a fim de pagar uma taxa de excesso de cota no Banco do Brasil, distante dali (os caixas do BB, visíveis em quaisquer bibocas do país, não ornamentam o posto fiscal de Epitaciolândia) e não pôde acompanhar os acontecimentos ulteriores, testemunhados por sua noiva.


Cansado de tanto esperar, indaguei se a mercadoria iria ficar retida; se seria confiscada pela Receita ou se eu poderia levá-la. O serventuário da Receita titubeou: “espere um pouco…deixe eu ver…tá bom, o senhor já pode ir, o senhor já pode ir”; é lógico que ele nem olhou a assinatura “no lugar certo”, nem tampouco revelou qualquer preocupação em entregar-me as notas fiscais.

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Saí do cortiço da Receita Federal direto ao passeio público e vi, sem surpresa, a ostensiva presença de dois agentes da Polícia Federal. É fácil divisá-los; além dos coletes com letras garrafais e armas à mostra, normalmente são bem jovens e, parece, os altos salários estão recrutando euro- descendentes; mas a marca registrada, mesmo, são os óculos-padrão imitativos de Keanu Reeves no filme Matrix.


Fui andando calçada acima para verificar se o meu filho já voltara com o carro, sem abandonar as quinquilharias, quando, então, fui abordado pelos dois agentes da Polícia Federal, já descritos, e desenvolveu-se o seguinte…



João Correia escreve todas as quintas-feiras no ac24horas. 


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