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A quem serve a democracia?

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Jozafá Batista


Em seu famoso “Liberalismo e Democracia”, Norberto Bobbio aponta a dificuldade que têm os democratas liberais para pensar sobre valores norteadores da democracia. Defendem eles que a democracia tem como fim a própria democracia, não importando os efeitos, inclusive deletérios, que essa postura possa causar.

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Assim se explica a decisão liminar de Carmen Lúcia, presidente da mais alta corte jurídica do pais, o STF, ao considerar que discursos que defendem a violação dos direitos humanos têm o mesmo direito à expressão democrática que teria seu “rival”: o discurso que busca garantir e ampliar tais direitos como forma de ampliação do exercício da cidadania.


A decisão da ministra expressa uma posição jurídico-política que se tornou regra nas democracias ocidentais. Ela consiste em avaliar a democracia não só como regime político, mas como um princípio teleológico dotado de estatuto ontológico próprio. Em outras palavras, a democracia só pode ser norteada pela afirmação da soberania da própria democracia.


O caráter tautológico desse suposto “isolacionismo ontológico” é claramente perceptível numa época como a atual, quando grupos sociais submetidos a relações excludentes de poder lutam pela afirmação de seus direitos. Negros, índios, homossexuais, pobres, mulheres, refugiados, crianças, idosos e outros grupos encontram, contudo, profunda resistência nos espaços sociais que almejam ocupar e necessitam por isso mesmo de garantias adicionais do poder público.


Ocorre que nessas lutas não há equivalência de forças entre os que buscam e os que negam direitos. A afirmação de igualdade entre os dois discursos, portanto, não encontra calço nem na teoria e muito menos na prática. A atração irresistível que essa perspectiva tem hoje vem do passado, especialmente entre os séculos XVIII e XIX, quando a afirmação da universalidade da democracia era uma necessidade prática para o desenvolvimento social. O jusnaturalismo, reconhece Norberto Bobbio, é subproduto desta luta – paradoxalmente, pela ampliação de direitos, neste caso, o nascimento dos direitos civis tais os como conhecemos hoje.


Em outras palavras, houve uma época em que o desenvolvimento político, em sua luta anticlerical e antidespótica, necessitou frisar os valores democráticos como o núcleo da sociabilidade humana superior. Nessa condição ferramental a democracia serviu aos interesses das burguesias ascensionais ao viabilizar a derrocada das monarquias por direito divino e estabelecer a condição de igualdade formal entre os sujeitos. Não é o caso atual.


Atualmente, o arranjo ideológico que forja uma falsa equivalência discursiva entre afirmação e negação de direitos segue a antiga tendência universalizante da democracia, mas, em seu rigor estético, não serve aos interesses ascensionais de mais ninguém – exceto daqueles que buscam, por meio da livre expressão democrática, cercear a própria liberdade democrática.


Esta inversão histórica – do avanço à negação de direitos -, além de evidenciar o citado caráter ferramental da noção de universalidade da democracia, revela a política como sua verdadeira transmissora de sentidos. Portanto, o que está em disputa discursiva não é o direito à liberdade de expressão como querem fazer crer os – novos – arautos da – tardia – liberdade positivista. O que está em disputa discursiva e concreta (a luta política trava-se nesta dupla arena) é o poder de estabelecer sentidos sociais – tanto hoje quanto nos séculos XVIII e XIX.


Conhecedores dessa armadilha da modernidade, uma longa tradição de filósofos políticos ocupa-se, desde Theodor Adorno, de reconhecer a razão fundamentada na ética (entendida como tal a capacidade humana de fazer escolhas racionais e livres) como a real fonte não só da democracia, mas de toda a política. É somente neste sentido, apontam, que a equivalência entre discursos de restrição e discursos de ampliação de direitos surge como nitidamente ideológica.


A rigor, a educação social para um sistema de liberdade política através da ampliação de direitos é o cerne do grande projeto iluminista europeu a que a nascente república brasileira aderiu alegremente, como se pode deduzir do lema positivista em nossa bandeira nacional (“ordem e progresso”). A negação institucional dessa trajetória só se explica em um ambiente conflagrado por interesses dominantes e obscuros que buscam a sua permanência a qualquer custo, inclusive pelo argumento falacioso do “direito à liberdade de expressão”. Mesmo que ao custo de conduzir o debate a um relativismo epistemológico amplo e perigoso.


Filósofos atuais utilizam o termo “falácia de falsa equivalência” para tratar de assertivas aparentemente opostas, mas que não possuem o mesmo peso ontológico. É um insight genial da questão, típico do poder de dedução da filosofia em todas as épocas, mas que também não abrange o fenômeno social em suas implicações sociológicas. De toda forma é um bom sinal, quero crer, da historicidade de paradigmas engessados sobre ferramentas de luta social.


Não é verdade, portanto, que a democracia tem como objetivo a própria democracia. A democracia tem como objetivo estabelecer um conjunto de ideias para transformar ou para manter determinada estrutura social (numa análise histórica arguta surge um “etapismo” razoavelmente esquemático: transformar, primeiro, e manter, depois). O que explica, em parte, a preocupação de se validar discursos de exclusão social em nome da “liberdade de expressão”.


Fundamentar a convivência humana em princípios éticos e racionais integra a grande tradição iluminista, o farol que ilumina todas as experiências políticas desde o fim da Idade Média. A longo prazo, incentivar essa trajetória permite entender a razão humana como o motor da liberdade humana, o que só pode ocorrer através da mobilização política na luta por direitos.


A democracia tem como objetivo a razão humana, fundamentada na ética. Permitir que, sob quaisquer argumentos, discursos de exclusão ou restrição sociais sejam equiparados artificialmente à busca pela ampliação (em muitos casos, de reconhecimento) desta capacidade humana comum é não só mero equívoco, é claro sintoma da incompreensão de ambas. O teor destrutivo de forças que manipulam expressões de efeito como “liberdade de expressão” para fazer valer uma agenda social excludente deveria servir de alerta para o teor de farsa do nosso sistema político “com o Supremo, com tudo”.

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Infelizmente, tais manobras nem sempre são claramente visíveis.


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