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A Lei Maria da Penha na linha do tempo

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Ozélia Reges[1]
adv.ozeliareges@gmail.com


[1] Advogada Criminalista: Graduada em Letras Português/Espanhol; Mestra em Letras: Linguagem e Identidade pela Universidade Federal do Acre; especialista em Direito Internacional Público; Palestrante na área de Gênero e Crimes contra as mulheres; Professora e Instrutora das disciplinas de Direito Internacional Público, Direitos Humanos, Direito Constitucional, Direito Penal e Processual Penal e Direito Penal Militar; Professora de Letras e Literatura Portuguesa.

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Gostaríamos de não nos pronunciar sobre as culturas das passagens, dos trânsitos e dos fluxos da tríplice fronteira: Acre, Bolívia e Peru. Entretanto já nos iniciamos no discurso e por ele estamos aprisionadas. Só temos uma saída: arrancar as correntes que nos aprisionam através do Direito, das Leis e das normas impostas pela sociedade, buscando nelas, paradoxalmente, sua liberdade de ação, prevenção e repressão.


Atualmente, os estudos sobre Gênero ganharam destaque e com ele as mulheres começaram a se ouvir e a se reconhecer, seja através dos discursos literários, seja através de discursos jurídicos e/ou das leis de proteção para a mulher como, por exemplo, A Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio.


As mulheres podem se autorreconhecer e ouvir as vozes uma das outras, antes estavam solapadas, ou pronunciadas em forma de balbucios inaudíveis. Hoje, os estudos de gênero se alargam, “sobretudo [para] dar visibilidade às mulheres na história […] a afirmação da diferença […] [que] trouxe para a cena […] a palavra de ordem ‘iguais mas não idênticos’”[1].


A partir dessa visão solidária e inclusiva da mulher na sociedade observamos significativos avanços[2]. Principalmente no Estado do Acre, lugar que marca nosso discurso, temos a oportunidade de acompanhar o caminhar da inserção de novos paradigmas no campo cultural e no campo jurídico – de forma a elaborar um importante reposicionamento da mulher no tecido social. Desse tecido social participam mulheres de diferentes etnicidades, como mulheres afrodescendentes, mulheres brancas, indígenas e asiáticas. Nesse espaço destacamos a presença das mulheres vítimas de violência familiar e doméstica, historicamente submetidas à  discriminação – enquanto mulher, grupo vulnerável que até hoje carrega as “cicatrizes” deixadas pelo patriarcalismo e pela “cultura da violência”.


Um esclarecimento necessário – delimitando e situando o objeto de estudo: A Lei Maria da Penha na linha do tempo


 A Lei Maria da Penha, lei com nome de mulher e para mulheres propõe um resgate à cidadania feminina, seja na cidade, no campo ou na floresta. Essa lei dá um “plus” a mulher, é o “manto protetor” das vítimas da violência conjugal e familiar. O texto da lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência contra a mulher. No aspecto preventivo foram criados organismos para educar tanto as vítimas como seus agressores, além das medidas protetivas  para as vítimas. No aspecto repressivo, a lei pune o agressor com pena de reclusão ou afastamento do lar.


Maria Berenice Dias[3], afirma: “A banalização da violência conjugal e familiar levou à invisibilidade do crime de maior incidência no país e o único que tem perverso efeito multiplicador. Suas sequelas não se restringem à pessoa da ofendida. Comprometem todos os membros da entidade familiar, principalmente crianças, que terão a tendência de se transformar em agentes multiplicadores do comportamento que vivenciam dentro de casa”. A Lei é destinada a proteger a mulher contra a violência doméstica e familiar. Em vigor, ela garante mecanismos de defesa mais abrangentes para mulheres vítimas de violência.


Configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão decorrente de gênero traduzida em sequelas físicas, psicológicas, ou morte ocorridas no âmbito familiar (parentes ou não ou por afinidades) no espaço doméstico com ou sem vínculo ou “qualquer relação íntima  de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação” (art. 4º, III).


É bom salientar que as relações familiar ou doméstica independem de orientação sexual. A Lei inova quando trata das relações de afeto, incluindo entre o sujeito ativo o noivo, namorado ou ex-namorado (art. 5º, III), bem como as relações homoafetivas (art.5º parágrafo único).


Segunda a doutrina e a jurisprudência pátria para configurar a violência doméstica entre namorados não é necessário a coabitação, bastando provar o nexo causal entre a relação.


A Lei impede, por exemplo, o encaminhamento do processo ao Juizado Especial – onde muitos dos casos acabavam com o agressor pagando “cestas básicas.” Com advento  da lei  é vedada  a pena de “cestas básicas”, bem como a suspensão  condicional do processo, pois no tocante não se aplica mais a lei 9.099/95 .


Outro fato relevante é o aumento da pena para o agressor. Antes estabelecida em 6 meses a um ano, passa a ser de três meses a três anos. De grande valia para coibir essa “mancha negra que sangra no seio da sociedade” é o fato de que a vítima só pode se retratar em juízo em audiência especial e antes de ser ouvido o Ministério Público.


Entre outros direitos especiais da Lei, estão a exigência da abertura de processo em caráter urgente, ou seja, as medidas  protetivas de urgência no prazo de 48 horas como também a prisão  em flagrante  e a prisão preventiva do agressor  quando preenchidos os requisitos. Além disso, a lei permite ao juiz impor ao agressor restrições imediatas, como perda do porte de arma e proibição de se aproximar da vítima ou filhos do casal entre outras medidas disciplinadas na Lei de Execuções Penais.

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Situando o objeto de estudo: A violência contra a mulher e os direitos humanos


“A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos” (art.6º). Os Direitos Humanos não são apenas um discurso, são mudanças de paradigmas, de cultura, de perspectivas de olhar sobre o mundo e as pessoas que nos cercam. Ou seja, são mudanças de atitudes. Apesar do reconhecimento dos direitos humanos e da correspondente inserção de normas internacionais e nacionais, evidencia-se que os referidos direitos continuam a ser violados.


O fato é que vivemos num mundo competitivo, desigual, cruel, egoísta e que por vezes ficamos incrédulos com situações que acontecem a nossa volta. Apenas a titulo de ilustração, poderíamos lembrar-nos há no território brasileiro uma denúncia de violência contra a mulher a cada sete minutos e que por hora uma mulher é assassinada. A cada dia uma mulher apresenta uma lesão no corpo [para não falar nas lesões da alma) vítimas de uma queda na escada, um tombo ou outros tipos de violência não descrita e dada como desculpa, por medo, ou por vergonha de “afirmar que apanha de seu companheiro ou esposo”. A sociedade internacional e principalmente o Estado do Acre convive com esse horror.


Ao longo dos anos e tradicionalmente (de maneira triste e absurda) as mulheres foram vítimas de abusos, atrocidades e violência diversas. No Brasil, por exemplo, a mulher não possuía capacidade jurídica plena e tampouco o reconhecimento da igualdade, ainda que no plano formal, para com os homens. “Desse modo, a situação da mulher no mundo (a de oprimida) lhe nega a expressão normal de humanidade e frustra seu projeto humano de autoafirmação e autocriação”.


É bem verdade que muitos problemas ainda persistem, mesmo com as ações patrocinadas no plano das Nações Unidas, todavia muitos Estados têm desenvolvido legislação no plano doméstico no sentido de fomentar a proteção para a mulher.


A Sociedade Internacional registra a grande preocupação de a mulher continuar sendo vítima de abusos, constrangimentos, discriminação e principalmente vítimas de feminicídio, pois em pleno século XXI, ainda se registra esse horror no mundo, no Brasil, na Amazônia e no Acre.


Os avanços são muitos e significativos, entretanto é longo o caminho a ser percorrido para que essa “cultura” da violência contra a mulher seja quebrada.


Pelo viés da Literatura e do Direito (as leis)  foram e são registradas  denuncias de exploração sexual, violência familiar e doméstica e feminicídio fator que ainda hoje na sociedade contemporânea continua a acontecer, e de lá para cá muito se fez para erradicar essa prática criminosa, entretanto essa prática hedionda ainda persiste em macular e violentar nossas mulheres.


 Delimitando o objeto de estudo: dez anos de prevenção e repressão à violência doméstica e familiar contra a mulher


No Brasil, há uma década  no mês de agosto é sancionada a Lei 11.340 – Lei Maria da Penha, lei com nome de mulher e para mulheres  “fruto dos gritos do silêncio” de uma mulher vítima dos horrores praticados pelo seu companheiro. Essa mulher  chamada de Maria da Penha Maia  lutou incansadamente para colocar no papel  uma lei de proteção às vítimas de violência perpetradas por seus companheiros (algozes), bem como de todas as formas de violência praticada em âmbito familiar e doméstico.


Retomando a história em 1983, Maria da Penha  foi ameaçada pelo marido, o professor universitário Marco Antonio Herredia, com arma e eletrochoque. Acabou baleada nas costas. Na ocasião Penha tinha 38 anos e três filhas  pequenas entre 6 e 2 anos de  idade. As investigações começaram em junho do mesmo ano, mas a denúncia só foi apresentada ao Ministério Público Estadual em setembro de 1984. O ordenamento jurídico pátrio carecia de diretrizes específicas, houve demora no julgamento e Maria da Penha acionou a Comissão Internacional de Direitos Humanos da organização dos Estados Americanos (OEA), que em 2001 condenou o Brasil com base na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher. Com a condenação, vieram as mudanças na legislação. Em 2002 Herredia foi condenado a oito anos de reclusão. Maria da Penha tomou mais fôlego e tornou-se símbolo da luta feminina. E assim “atrás de cada olho roxo existe um homem frouxo” palavras da mulher que deu seu nome a Lei que trata da violência contra a mulher.


Recentemente em março de 2015 para somar na proteção à mulher vítima por questão de gênero é sancionada a Lei 13.104, a Lei do Feminicídio, que caracteriza-o como crime hediondo e com agravantes quando o mesmo é praticado em situação de vulnerabilidade (gravidez, menor de idade, na presença de filhos, etc.).


O Brasil tem uma denúncia de violência contra a mulher a cada  sete minutos. As estatísticas registram que  a violência doméstica mata cinco mulheres por hora no mundo. No Brasil por dia são assassinadas treze mulheres[4]. Esses números crescentes colocam o Brasil em quinto lugar no  ranking mundial de feminicídios.


  No Estado do Acre a Vara de Violência contra a Mulher (virtual) nos anos de jan/2008 a agost/2016 protocolou e agendou 17.037 audiências, sendo realizadas 12.040.  De jan/2016 a agost/2016 há 3.195 processos em andamento; 2.151 distribuídos e 166 em evolução para ação penal. Desses números foram sentenciados 2.273 e 303 estão transitados em julgados.[5]


Interessante destacar, que durante os oito anos de funcionamento da Vara de Violência contra a mulher foram feitas realizadas 4.443 retratações. Ou seja, as vítimas da violência antes da manifestação do Ministérios Público retiraram a acusação contra o seu agressor.


Cumpre informar que no mês de julho foi protocolocado pela Comissão da Diversidade Sexual da OAB/AC pedido de medidas protetivas na  Vara de Proteção a Mulher do Estado do Acre, na qual de pronto foi  concedida a medida protetiva de urgência para uma transexual com base na previsão legal do artigo  5º parágrafo único da Lei em comento e no entendimento de vários tribunais de justiça do Brasil, demonstrando uma evolução na interpretação da Constituição Federal e demais leis infraconstitucionais do ordenamento jurídico pátrio.


É bom esclarecer, que os mecanismos de proteção à mulher vítima de violência familiar e doméstica não se restringe apenas as leis, se faz presente também através das Políticas Públicas para Mulheres, de grupos voltados para o estudo de Gênero e da Comissão da Mulher Advogada da O objetivo desses debates, se os contemplamos de modo amplo, é a transformação da condição subjugada da mulher. “Trata-se de tentar romper com os discursos sacralizados pela tradição, nos quais a mulher ocupa, à sua revelia, um lugar secundário em relação ao lugar ocupado pelo homem, marcado pela marginalidade, pela submissão e pela resignação”[6]


A questão debatida aqui não visa apenas a aplicabilidade da Lei durante esses dez anos de vigência, mas discutir uma “cultura da não violência” através da didática da Lei Maria da Penha. Nossa intenção e informar a sociedade em geral desse instrumento (a Lei) que coíbe a violência conjugal e familiar para que as próprias vítimas possam de fato decidir e denunciar o seu agressor.


A Lei Maria da Penha deve ser vista como um instrumento de defesa para que a mulher em situação de violência doméstica ou familiar possa ter os seus direitos respeitados, bem como a orientação e a proteção necessária para coibir agressões e maus tratos contra a sua pessoa. As questões polêmicas que surgem no decorrer de sua vigência são comuns, como em todas as leis, pois nada é absoluto. A Lei veio para dá um “plus” a mulher que é vulnerável nessa relação de gênero.


[1] WOLFF, Cristina Scheibe. Mulheres da floresta: Uma história: Alto Juruá, Acre (1890-1945). São Paulo: Hucitec, 1999.


[2] O discurso foi pronunciado  e publicado pela autora do texto na Revista Philologus, Ano 17, nº 51, set./dez.2011 – Suplemento. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011, p. 267 com o título  “Direitos Indígenas: A Lei Maria da Penha na “Floresta””.


[3] DIAS, Maria Berenice. A lei Maria da Penha na justiça: A efetividade da lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.7.


[4]  “Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres


[5] Dados fornecidos pela Vara de Proteção à Mulher do Estado do Acre –  Relatório Estatístico Situacional Sintético jan/2008 a agost 2016.


[6] ZOLIN, Lúcia Osana. Crítica feminista. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana. (Orgs.). Teoria literária – Abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3. ed. rev e ampl. Maringá: Eduem, 2009, p. 217 a 242.


*Advogada Criminalista: Graduada em Letras Português/Espanhol; Mestra em Letras: Linguagem e Identidade pela Universidade Federal do Acre; especialista em Direito Internacional Público; Palestrante na área de Gênero e Crimes contra as mulheres; Professora e Instrutora das disciplinas de Direito Internacional Público, Direitos Humanos, Direito Constitucional, Direito Penal e Processual Penal e Direito Penal Militar; Professora de Letras e Literatura Portuguesa.


 


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