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As Delícias da Alienação

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JOÃO CORREIA SOBRINHO


“J”… E assim falou Jefferson Péres, Senador pelo vizinho estado do Amazonas, um dos mais qualificados quadros, em todos os tempos, do Parlamento da República do Brasil. Sua fala, lapidar, foi feita no debate na CCJ ( Comissão de Constituição e Justiça ) do Senado. Depois de proclamar seu voto contrário ao projeto de criação do SINAD e CONAD e de afiançar que subscreveria os dois primeiros capítulos, que tratam da reinserção social, da prevenção e tratamento de dependentes químicos- que não podiam ser votados em separado – ele disse o seguinte, falando da repressão aos entorpecentes: ” …corrobora o grande equívoco coletivo que é tentar reprimir as drogas…sou totalmente a favor da legalização das drogas… estou investindo contra um tabu social, estou me arriscando… “. Logo adiante, o Senador sintetiza seus argumentos : ” … em primeiro lugar, viola o direito inalienável da pessoa humana, que é de um ser adulto fazer o que quer da sua vida, inclusive consumir drogas, inclusive tirar a própria vida. Tanto é assim, que o Código Penal não reconhece como delito a tentativa de suicídio; se o cidadão tentar se suicidar, e escapar, ele não vai sofrer penalidade alguma. Por que? Porque a vida lhe pertence. A mesma coisa se ele quiser consumir droga: o problema é dele. A não ser que pelo uso da droga ele cause prejuízo a alguém. Aí ele está cometendo um crime…”. O Senador Péres atribui diretamente à repressão dos entorpecentes a formação de uma das maiores chagas dos tempos atuais, representada pelo narcotráfico. Nenhuma formação é mais nociva e capaz de desestruturar e desmontar as conformações políticas e sociais dos países. Em seus termos, a repressão: ” … em segundo lugar, alimenta um câncer que se chama narcotráfico. Esse câncer só será extirpado com a legalização das drogas. Enquanto existir, haverá narcotráfico. Isso é um câncer que corrói tudo: corrompe a polícia; corrompe sistema prisional; corrompe magistrados; está corrompendo políticos. E ninguém vai acabar com isso, nunca, porque não acabaram em país algum do mundo… haverá sempre pessoas com tendências a consumir drogas; isto é universal; sempre houve e sempre haverá; infelizmente…na verdade, existem pessoas com tendência a consumir drogas; enquanto houver pessoas com tendência a consumir drogas, haverá quem lhe forneça droga, pode mobilizar exército, marinha, aeronáutica, polícia federal, que não vão acabar com isso…”.

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Devo pedir escusas ao leitor por submetê-lo a tão longa citação. Mas considerei muito relevante a opinião do Senador amazonense e considerei difícil contestar o conjunto de sua expressão.


De qualquer sorte, dessa forma, três fatos, aparentemente desconexos entre si, concorreram para eu escrever este pequeno texto; a) o rubor de saber que forças do Exército do Brasil e da Polícia Federal, sediados em São Salvador, no Rio Moa, adentram os centros de nossa mata, evitando o confronto com traficantes peruanos. Estes últimos vêm entregar drogas em nosso território e estão melhor aparelhados e armados do que nossas melhores forças de segurança. Este ritual é repetido na imensa solidão de nossa floresta; b) conheci a opinião de meu sobrinho, o médico Daniel Leal Lima, que trabalha em Cruzeiro do Sul, favorável à liberação de todas as drogas. Sabia que ele se dedicava ao estudo do assunto; que é um jovem corajoso; mas não o tinha flertando com a temeridade, especialmente pelos padrões da ética social atual, nem sempre isentos de elevado grau de hipocrisia. Expressou suas idéias no facebook e abriu a caixa de Pandora; c) revi uma antiga fala do saudoso Senador pelo Amazonas, Jefferson Péres, parte transcrita acima, que, ousado por investir contra um tabu, se considerava um ET, vindo diretamente de Marte para a Terra. Esta fala encontra-se no YouTube e representa minha primeira indicação.


As drogas sempre existiram e sempre existirão, diz o Senador falecido. O certo é que acompanham o gênero humano desde sempre; desde que os humanóides desceram das árvores ou habitaram a escuridão das cavernas, isto bem antes do surgimento de Adão. Na antigüidade, há relatos vívidos de consumo de drogas pela realeza egípcia, pelos gregos nos fascinantes mistérios de Eleusis e nas bacantes dos patrícios romanos. Se vão existir, sempre, depende da permanência dos homens no planeta.


O consumo de drogas parece inserir-se na permanente busca das pessoas pelo prazer. Em pequena brochura, intitulada: O Mal – Estar na Civilização, o Dr. Sigmund Freud defende que a humanidade está aqui para maximizar o prazer e o desfrute e evitar ou minimizar a dor e o sofrimento; os dois estados invariavelmente se alternam, com matizes variados. É lógico que o prazer humano sugerido pelo eminente neurologista ultrapassa em muito os prazeres elementares e instintivos dos sentidos, que também são cruciais ao viver humano. Mas o criador da psicanálise alarga significativamente o conceito de prazer, ampliando seus horizontes para as esferas intelectuais, estéticas, de poder etc. Este é um livro que dá vontade de recomendar, pelo menos pela linguagem científica clara e inteligível, na qual o doutor Froid Explica foi um craque. Minha segunda recomendação. De minha parte, arriscar-me-ei em dizer que o dinheiro, a segunda maior invenção humana, conforme alguns economistas, é ” prazer condensado”, ele consegue trazer para o consumo a grande maioria dos produtos do artifício humano. Como ensinou Paulinho da Viola: ” dinheiro na mão é vendaval… e quando o jeito é se virar, cada um trata de si; irmão desconhece irmão”. Pena que tenha descoberto isso muito tardiamente.


O consumo de drogas nem sempre foi contestado pelo ” stablishment”, na era capitalista moderna, como ocorre nos dias de hoje. Houve épocas em que ele sustentou certa fisionomia libertária. A bela música que faz par com o fino poema: Mr. Tambourine Man, de Bob Dylan – vertida para o português brasileiro, com o título: Mr. Do Pandeiro, e cantada no vozeirão de Zé Ramalho-, é de 1965 e o avassalador festival de Woodstock, paradigma de um salto na evolução dos costumes, é de 1969. Na grande literatura, Aldous Huxley, autor do clássico Admirável Mundo Novo, dispensa um tratamento literário invulgar ao ambiente das drogas em seu : A Ilha. Mesmo na atualidade, os usuários de drogas em segmentos médios e altos da sociedade qualificam os não consumidores como ” caretas”, numa alusão caricata que diferencia os iniciados dos não iniciados.


Os anos 70 do século passado marcaram a derrota norte-americana no Vietnã ( 1973 ) e o início de outra guerra, agora guerra contra as drogas, ambas sob a batuta do presidente republicano, Richard Nixon. Esta guerra, parece, nasceu perdida. Mesmo que os EUA tenham influenciado o mundo inteiro, com os países em todos os quadrantes do planeta criando ou redefinindo suas legislações de aumento da repressão às drogas, mesmo que lhes tenha fornecido tecnologias e dinheiro, tudo indica, 44 anos depois, uma derrota devastadora nos intuitos de inibir a produção e o consumo de drogas ilícitas no mundo. É como enxugar uma geleira, é como esgotar o mar com um paneiro, é como tapar o sol com uma peneira. Alguém pode perguntar o por que de tamanho determinismo. A resposta, a meu ver, é quase simples: é o funcionamento pleno da velha e implacável lei da oferta e da demanda de um produto, ou de um feixe de produtos. O crescimento da população e da renda da população mundial nos últimos cinqüenta anos fizeram crescer de forma exponencial a demanda por produtos, junto da qual foi turbinado o consumo ilícito de entorpecentes. Crescimento absoluto da população gera crescimento absoluto da demanda por drogas; crescimento da renda da população implica em crescimento relativo desta mesma demanda, ou seja, numa inversão irônica da lei de Jean Baptiste Say, no caso, é a demanda crescente que cria a própria oferta expansiva de drogas.


As duras medidas repressivas praticadas pelos norte-americanos deram com os burros n’água. O maciço apoio que forneceram ao Governo Colombiano para combater a narcoguerrilha das FARC obtiveram êxito, sem dúvida, mas deslocaram o poderio do narcotráfico para bem pertinho de si; nada mais violento, brutal e pavoroso do que as quadrilhas de traficantes mexicanos de olho no mais rico mercado consumidor do planeta, o mercado norte-americano. O México, inclusive, está se desfigurando como nação. Está se tornando um narcopaís.


Não se pode negar, todavia, que a idéia de repressão total ao consumo de entorpecentes tornou-se dominante mundo afora em todas as camadas sociais. De tão dominante e enraizada, especialmente no senso comum, tornou-se uma idéia moral. Desafiá-la virou heresia, contestá-la, operação de alto risco. Por isso, um homem da qualidade intelectual e moral de um Jefferson Péres escudou-se na figura do ET, para justificar seu voto histórico e lapidar, na CCJ do Senado. Por isso, Fernando Henrique Cardoso, do alto de seu respeito intelectual, fica” pisando em ovos” para levar adiante a discussão de tema tão candente e importante, no âmbito das Nações Unidas. Mesmo as experiências do Uruguai e dos Países Baixos europeus são servidas com muita cautela, evitando confrontar a hegemonia americana.


A pura e simples liberdade na produção e no consumo de entorpecentes é uma idéia visionária que levará muitos anos para transformar-se em força material capaz de organizar este poderosíssimo mercado (fala-se em dois trilhões de dólares, algo como o PIB da oitava maior economia do mundo). Sua menção persistente e perseverante, no entanto, poderá servir de âncora para um debate que esclareça a irracionalidade da situação atual, atraia a sociedade para refletir sobre a insensatez social e política do narcotráfico e a estimule a buscar alternativas a ele.


É oportuno mencionar, de passagem, que as políticas dominantes de repressão às drogas ilícitas nem sempre foram praticadas pelas potências dominantes no mundo. Ao contrário. No início do século XIX, após as guerras napoleônicas, e no início da segunda metade do mencionado século, a poderosa e civilizadíssima, Grã-Bretanha, maior potência global, fez duas guerras contra a China, conhecidas como Guerras do Ópio. Facilmente vitoriosos, os britânicos impuseram aos chineses o consumo de ópio produzido profusamente em suas colônias da Índia e da Birmânia. Viciavam-nos e obrigavam os chineses a seguirem consumindo seu ” produto colonial”, seu produto de exportação.

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No sentido de evitar ilações incorretas, devo mencionar que o Senador Jefferson Péres confessou-se, em sua fala, hostil ao consumo de entorpecentes; o médico Daniel Leal Lima, por sua vez, que conheço desde criança, tem ojeriza aos entorpecentes ilícitos e também às drogas lícitas. De minha parte, fui tabagista por três décadas e consegui vencer a dependência da nicotina. Continuo apreciando uma cerveja ” canela de pedreiro” e, eventualmente, um bom destilado. Não tive experiência com drogas ilícitas e digo isso sem nenhuma conotação moralista. Neste sentido, sei que não fui um homem do meu tempo; é que minha utopia era outra. Sei, não obstante a verdade desta informação, que serei o próximo a ser amarrado, sem poder me desprender, num exuberante pé de taxi. Para não cansar o leitor, abordarei este mesmo assunto, focando no Brasil e no Acre, no próximo textinho.


JCl_100João Correia, 61 anos, economista; Professor da Ufac desde 1978. Pós graduado no NAEA e UFRRJ; coordenador da CEPA, no  Governo Joaquim Macedo ( 1979- 82 ), ; Pró-Reitor de Extensão, administração Sansão Ribeiro ( 1988- 91 ), ;  Deputado Estadual ( 19991- 2002 ); Deputado Federal ( 2003- 2006 ); Professor da Ufac ( 2007 aos dia de hoje )


 


Link para o vídeo de Jefferson Péres:

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