Menu

Quantos cabem no amor?

Receba notícias do Acre gratuitamente no WhatsApp do ac24horas.​

O casamento de Augusto estava uma merda só! Quinze anos depois, somente o futuro dos filhos lhe fazia suportar a presença de Mércia todas as noites. Agradecia muito a Deus ter assinado um pacote de TV fechada, pois poderia ficar até altas horas da noite vendo tudo o que fosse possível, para que não se submetesse a deitar na mesma cama que ela.


Os dessabores, a rotina, as fugidas no horário do almoço, o desgaste e o conhecimento mais apurado da personalidade da esposa faziam-lhe não querer nem imaginar espécie dessa ordem sensual. Faltava-lhe paciência para construir todo o clima que se exige para a cama de um casal comum. Por ele, deitava e esperava os carinhos que antigamente eram as prévias, mas que gostaria muito que fosse o desfecho do sexo básico e ordinário.

Publicidade

Ela pouco se importava com essa mascarada rejeição de Augusto às funções comuns de qualquer homem. Fazia tempo que aceitara os convites de outras vozes e de outras bocas. Mergulhada em outros aromas, nem se lembrava mais do cheiro do homem que com ela vivia há tanto tempo.


Os dois traiam e eram traídos. O pacto velado era ou se resumia a esconder dos filhos e da sociedade mais próxima as aventuras que reciprocamente fomentavam. Memória boa não tinham, mas parece que a ultima vez que exerceram os instintos de casal fora nas festa de fim de natal, dois anos antes, quando bêbados, acordaram nus e aceitaram que algo tinha acontecido.


Fatores genéticos ou sei lá o que trouxeram a insanidade para Mércia numa certa tarde de Agosto do ano passado. Uma grave crise de histeria jogou toda a casa fora. Panelas, cadeiras, mesas, louças e vidros foram morar no quintal enquanto a doente limpava apressadamente a casa vazia, dizendo que seus conhecidos estavam prestes a chegar.


O avançar dos dias fez com que ela piorasse o quadro, tornando insuportável e perigoso o convívio com alguém que mais nada sabia além do que própria julgava saber. Era preciso interná-la, afastá-la dos filhos e dos demais expectadores e testemunhas do que a loucura realiza na vida das pessoas.


Augusto assumiu tudo e teve de reformular a sua história. Um novo homem surgiu das ruinas de um matrimonio podre e devasso. Conferiu todos os cuidados aos filhos que teve de criar sozinho. Dobrou o trabalho para garantir o melhor centro hospitalar para a esposa e se absteve das aventuras que no passado não eram tidas como vergonhosas para alguém de bem e de direito.


Por sete anos, tempo que a loucura esperou para levar embora Mércia, Augusto fora o mais fiel dos maridos, o mais exemplar dos homens, o mais orgulhoso dos pais. Visitava-a a cada dois dias e sempre se atentava profundamente a tudo que ela dizia, quando estavam sozinhos.


– Trouxe as ervilhas?


– Sim, Mércia. Não poderia esquecer. Cada vez que aqui venho, fico ansioso para saber de seus segredos e truques. Quem serei hoje?


– Soares.


– Quem é Soares?

Publicidade

– Um paulista que ministrava cursos de aperfeiçoamento pra nós no trabalho. Comeu todas as casadas do meu setor. Não era bonito… era gordo, mas cheirava a poder, sabedoria e dinheiro. Isso nos atraia.


– E o que ele fazia com as ervilhas?


– Vou lhe mostrar.


Se a loucura e outras doenças adjuntas tivessem um pouco mais de paciência, Mércia teria tempo de mostrar mais do que viveu e do que fez fora das cercas de sua casa. Se a loucura e outras doenças adjuntas tivessem um pouco mais de paciência, Augusto teria conhecido mais a felicidade e o prazer de ser chamado pelo nome deles e fazer tudo o que as mentes criativas de quem experimenta a novidade é capaz de fazer.


Do asilo em que se encontrava, Mércia, antes de morrer, sentiu frustação de não ter mais uns dez anos para fazer, um pouco mais, seu marido feliz. Sabia que isso era possível, pois boa memória, sempre teve. Cumpriu-se, então, a ralada frase do padre: até que a morte os separe.


INSCREVER-SE

Quero receber por e-mail as últimas notícias mais importantes do ac24horas.com.

* Campo requerido