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A velha que colecionava bonecas no hospício – parte II

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– Trouxeram o que eu pedi? Fizeram o que eu mandei? Cumpriram minhas ordens? Oh! Como é mal esse mundo. Descansem! Rápido! O mundo pode acabar. Os meus olhos sangram. Idiotas! Como podem se perderem em outras que não as minhas palavras? Eu sou a vossa luz ao meio dia!


– O que ele está dizendo? Não entendi nada, Doutor Cristiam!

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– Cíntia, esse rapaz se imagina médico. Temos de fingir que acreditamos nele. São crises constantes de uma mente falível e reles.


– Certo, doutor! Pode deixar! É meu primeiro dia aqui, mas já trabalhei em outros centros dessa natureza. Doutor, o que ele busca esconder de nós?


– Ah! Não ligue! Ele guarda centenas de bonecas. É estranho seu comportamento. Durante o dia, ele desmonta todas elas, como se quisesse castigá-las por algo errado que tivessem feito. Mas à noite, ele as trata com carinho, afago, compreensão e bom cuidado. Como se, se sentisse só. Preso a uma noite fria, guardado em uma solidão eterna. Ele necessita disso. Ele vê nessas bonecas gotas de luz para sua vida.


– Confesso que isso me instiga.


– Ficaria mais ainda, se soubesse que o que ele usa para cobrir e proteger seus brinquedos são a única lembrança de seu passado.


– Não entendi, doutor. Poderia me explicar melhor?


– A mãe dele morreu num parto complicado. Antes de se despedir, ela convenceu ao médico que a deixasse viver, pois teria chances de ter uma vida melhor do que a dela. Aqueles trapos que cobrem as bonecas são partes da roupa da mãe dele. Ele se mataria se alguém ousar tirar dele essa memória tão triste.


– Mas por que ele chama o pano de Vera?


– Era o nome da mãe dele.


NO NAVIO


Pequenos corais se formavam, peixes passeavam felizes e preocupados. Outras formas de vida passavam a habitar aquela carcaça de navio naufragado. No mar, viver é tão repentino quanto morrer. A condição de uma existência, lá, está fadada a uma questão de sorte.


O imponente navio que um dia partiu não era mais! Refém de uma fantástica “tempestade”, a naus sucumbiu e guardou-se eternamente nas profundezas do oceano. As vidas que ele levava, hoje adormecem nas salinas de uma solidão e melancolia.


As testemunhas ainda esperam, paradas, a travessia do Atlântico. Não podem mais rir, não podem mais chorar, não podem mais ser.

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Alguns jogavam pôquer, outros bebiam no salão de festa, outros choravam a emoção do reencontro que haveria. Que haveria.


NO HOSPITAL


– Que morra então, maldita! Que tua morte seja teu maior castigo por ter escolhido a ele e não a mim. A ética médica dará lugar à vingança de um homem ferido.


Eu quis coisas boas… eu pensei em coisas boas para nós dois. Se eu não tinha a beleza dele, se eu não era aos seus olhos o agrado que ele era, que os dois se juntem no além, na terra dos não-sentimentos.


Eu jamais permitiria que vocês se reencontrassem novamente. A minha dor seria maior ainda. Meu sangue ferve! Os meus olhos sangram! A tormenta fez morada eterna em minhas mãos. Tatearei a farsa, mas não te darei esse prazer. A felicidade é como o ar que a mãe sente, sem dominar, sem reter, sem possuir.


Os explosivos, a essa hora, já devem ter feito seu papel. O navio que o traz para ti já deve ter se encontrado com a escuridão do mar. Agora é tua vez.


Mas sabe que quero teu filho vivo. Esse monstro que me faz chorar, também me trará alegrias. Doces alegrias. Grandes alegrias.


Deixá-lo-ei viver. Para que veja o quanto esse mundo é cruel. Deixá-lo-ei ser para eu veja a beleza da minha misericórdia. Nossos dias se cruzarão no infinito.


– E então doutor Cristiam? Minha filha está viva? E a criança… morreu?


– Oh, Dona Fátima, meu espírito está em prantos, minha alma vaga no mar do desespero. Vera não está mais entre nós. Morreu sorrindo, como se reconhecesse nossos esforços para salvá-la. O filho nasceu! Talvez como um consolo nesse mar de infundadas desilusões.


Ela não teve tempo de tocá-lo, de senti-lo, de por em prática o amor que qualquer mãe tem por sua herança, por sua tradução do amor conjugado que viveu.


NO HOSPÍCIO


As bonecas estavam limpas e arrumadas! Estranho, pois ainda era dia. O quadro era perfeito. Quem estava na sala poderia também perceber que os olhos delas eram claros, mais que normal. O sorriso delas era farto, mais que o normal. Por isso a impossibilidade de serem seres animados, pois ignoram as coisas inusitadas da vida.


Do outro lado do quarto, dois corpos mortos por um mesmo instrumento. Após matar o Doutor Cristiam, o paciente se despede do mundo. Preso o pescoço com o que tinha de mais primitivo em sua vida. As memórias de Vera eram agora como corda sufocante. Se eram tristes ou não, não sabemos. O certo e que agora tinham sido úteis para o que ele pretendeu como único ato.


O mundo acabou!


Por FRANCISCO RODRIGUES PEDROSA         f-r-p@bol.com.br


 


 


 


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