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O Caminho que leva aos caos

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Resolvi chamá-los, porque precisava dizer uma coisa antes de ir. Os médicos nos seus cinismos profissionais não me revelam muita coisa. Mas bem sei que minha hora está chegando. Os meus dias nesse mundo estão se encerram lentamente. Não que eu seja mais e melhor que os médicos. Apenas me baseio numa enorme e grande diferença: eles estudam o meu corpo, eu vivo nele, resido nesses últimos 68 anos.


Ontem à noite, o câncer que me beija forte e frio deu sinal de que eu deveria realizar meus últimos atos, resolver os pormenores e me preparar para a ordem natural. Por isso os chamei, meus filhos. Algo grande devo dizer-lhes.

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Nasci numa casa de cristãos devotos, gente fervorosa, resignada e de pouca inteligência prática. Ases nos assuntos do céu, davam provas claras de que pouco lhes interessavam nesse mundo estranho. Eram como as aves que migram, mais pelos ventos e destino biológico do que por opção.


Meus pais nunca souberam, mas jamais aceitei essas maldiçoes religiosas. Nunca entendi esse Deus orgulhoso, tolo e egoísta. Das historinhas bíblicas, eu ria solitário, toda vez ou quando os olhos da casa eram fechados, nas cansativas, entediantes e prolongadas orações. Palavras jogadas ao vento, pois pra mim meus pais e meus irmãos sempre falavam sozinhos.


Mas era bom! Ah, como era bom! Tirando essa matéria, das quais nem gosto de lembrar, meus pais foram maravilhosos. Deram-me uma infância de erros e acertos. Possibilitaram-me ser criança em todos os sentidos. Eu tomava banho na chuva e cantava canções românticas, sempre que eu via o vento soprar suave.


Essa fragilidade mudara, como meu rosto ao tempo cruel. Minha adolescência foi conturbada, pois não percebia como são idiotas os jovens. Drogas, eu usei. Embriaguei-me nas fantasias passageiras. Bebidas fizeram parte de meus protestos, como se fossem sabores de um paladar de revoltas e medo.


Tratei as mulheres mal, enganei a muitas e, quando eu imaginava algo além, mudava meus conceitos, não percebendo que era possível haver alguma séria, dentre aquelas que não valiam nada como eu. Queria ser livre, independente, longe da voz que me calaria.


Eu era um sem nada qualquer. No fundo, olhando de uma forma mais clara, os jovens não teriam grandes problemas, se cada um pudesse criar e ser dono de um mundo só seu. Mas não queremos estar sozinhos.


Antes dos vinte, quando essas bobagens passaram, já estava bem encaminhado. Ganhei estudo, dancei com a seriedade e mirei o futuro. Quando saía da faculdade, já tinha escolhido bem a mulher da minha vida.


A mãe de vocês me acompanhou nesses longos trinta e cinco anos. Não sou cego! Sei que tive minhas falhas. Eu bem sei! Os homens não passam de seres estúpidos, mendigos que carregam flores, pisadas, por eles, no caminho.


 Apesar disso, sempre olhei meu casamento sobre o prisma do utilitarismo genético com pequenas doses de afeto e suspeitas de se sentir bem: criamos vocês três sem maiores problemas. Hoje já não dependem de nós. Isso é um fato. Não imaginem que não sabemos que fora dos laços sanguíneos, somos para vocês dois velhos, dois estorvos que a sociedade vigia e exige dos filhos a cautela.


Mas não ligo pra isso. Talvez por que os sentimentos que sentem por nós sejam o mesmo que tive quando era mais. Quero que saibam que o nascimento de cada um de vocês foi para mim momento que nunca conseguirei narrar, tampouco medir a emoção que esse coração, que agora quer descansar,sentiu em vê vocês chorarem pela primeira vez.

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Os primeiros passos, as primeiras febres, as primeiras vezes que ensaiavam meu nome, enfim, era tudo emoção. Vocês eram melhores na infância. Não que hoje estejam amargos como eu, mas tenho forte tentação a vê-los também como meros seres humanos: o “próximo”, da bíblia que eu nunca amei.


Filhos, eu os trouxe aqui apenas para lhes dizer que eu nunca fui feliz. Em outras palavras, fiz de minha vida um mar de ilusão, imaginando que a felicidade era um estado permanente. Pura ilusão. Filhos, os conceitos tem materialidade questionável.


Não me lembro onde, mas acredito nas frases de um pequeno livro que li: o segredo da vida é colecionar singelas flores ao longo dela. Pequenas emoções contidas na memória, parcas alegrias que a vida dá, efêmeras sensações que nos alegram e que nos enchem de alegria.


A dizer que, lucidamente, no final da vida, na reunião de tantas flores, possamos dizer que tivemos um jardim. Um jardim regado a lágrimas, suor e sangue.


– Ricardo, você vai se atrasar para seu casamento. Você está querendo reverter os papeis é? São as noivas que podem deixar esperando.


– Um momento, papai, estou escrevendo uma carta.


– Que carta? Para que?


– Quero abri-la daqui a trinta e cinco anos.


– Não tem uma hora mais apropriada para escrever uma carta?


– Não.


“Nunca fui como todos. Nunca tive muitos amigos. Nunca fui favorita. Nunca fui o que meus pais queriam. Nunca tive alguém que amasse. Mas tive somente a mim. A minha absoluta verdade. Meu verdadeiro pensamento. O meu conforto nas horas de sofrimento. Não vivo sozinha porque gosto e sim porque aprendi a ser só…” (Florbela Espanca)


Por FRANCISCO RODRIGUES PEDROSA       f-r-p@bol.com.br


 


 


 


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