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É você quem você é?

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Tinha acabado de conhecer a complexidade do mundo. Era nova, muito nova. Os amigos haviam registrado tudo, desde o começo. Colecionavam sinais de sua história, e o que estes signos não conseguiam lembrar, os companheiros faziam questão de dizer.


Ainda possuía marcas no corpo da recém-deixada pupa. Como qualquer ser de pouca idade, do estágio do ovo e da larva, sempre fazia questão de esquecer, a fim de provar que era capaz de realizar todas as atividades da sociedade.

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Mal amanhecia, quando ela foi avisada quimicamente acerca de um corpo que agonizava debaixo de um poste de luz. Num estranho ritual noturno, aquele inseto voador levou-se pelo brilho da lâmpada e, após rodar em volta dela por toda a madrugada, caiu ao chão, se preparando para morrer.


Um batalhão orgulhoso marchava rumo à presa. Num compasso perfeito e ordenado, a infantaria olhava para frente sem o direito de se perder com a paisagem matinal.  As maiores, os soldados, já estavam lá, puxando, ferrando e tentando despedaçar o besouro em partes mais leves.


Quando as operárias cruzavam um instransponível muro, descendo o despenhadeiro de concreto, a recém-admitida no exército das operárias recebe uma vassourada fortíssima, capaz de levá-la a flutuar no ar por vários segundos até cair dentro de uma caçamba de um velho veículo.


 A senhora que limpava a calçada da frente, aproveitando para estender a faxina até o muro, daria um rumo diferente para quem estava ali apenas para contribuir com o transporte das partes do cadáver.


A camionete foi ligada, as amigas, triunfantes, chegaram até o besouro, mas ela, a cada momento, se distanciava das companheiras. Não sentia mais a feromonas, tão útil para se comunicar com as demais. Estava presa em um ambiente hostil e desconhecido. Estava sozinha.  


Sempre aprendeu o valor do conjunto. A força era algo construído pelo sentimento de união. Naquele momento inoportuno e inusitado, não tinha ideia do que fazer, que medida tomar, que procedimento a ser adotado. O que faria uma formiga mais experiente nessa ocasião? Não sabia.


Apesar de não ter opinião, de não poder tomar decisão, presa aos instintos mais primitivos, bitolada em um conceito de um organismo social, o triste inseto gostava de seu papel. Ao menos tinha com quem repartir suas aflições e desafios. Não possuía identidade, mas se inserir em algo maior que lhe escapa o controle era algo bom.  Agora, ali, sozinha, sentiu-se presa em sua singularidade. O que faria uma formiga mais experiente nessa ocasião? Não sabia.


– Levanta! Levanta! Hippie nojento. Dormiu a noite toda e ainda quer virar o dia? Você fede. Sim, você fede. É sujo e não percebe sua miséria. Que vida é essa? Como pode viver assim, maldito? Vamos! Vamos logo, porra! Não quero me melar com você. Levanta! Daqui a pouco a praça tá cheia de cidadãos e turistas. Não podem ver uma excrecência como você. As fotos precisam sair bonitas e a cidade deve dar prova de sua beleza.  – ordenou o policial, inconformado com essa tarefa que ele imaginava não ser de sua alçada.


– Nossa, que sonho! Hei! Calma! Tá de boa seu polícia. Relaxa! “Tô vazando” já. Só arrumar meus trecos e me mando. – disse o hippie, ainda meio tonto e dolorido com o cimento frio da praça.


No dia seguinte


– Desculpe senhor, mas não temos vagas. Olha, se o senhor for agora mesmo naquele prédio logo ali na frente, vai conseguir. Parece que tão pegando gente.


– Obrigado, valeu mesmo.


No outro canteiro de obra.

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– Seu nome?


– Meu nome?


– Sim senhor, seu nome. Como poderemos empregar alguém sem nome? Quem numa sociedade não tem um nome? A padronização ocorre de várias maneiras. Essa é uma delas. Vamos! Tenho pressa.


– Ah sim! Um momento. “deixa ver aqui nessa pasta”. É… Aldomiro, Aldomiro Lima de Castro.


– Certo! Faz o que?


– O que mandarem? Sou serviçal, “pau pra toda obra”.


– Profissional?


– Não, “orea seca”.


– Certo! Pode começar segunda. Bem vindo a essa obra. Somos mais de cem trabalhadores. Aqui formará uma grande família.


– Obrigado, precisava mesmo de um bom formigueiro. A felicidade não existe na solidão.


Em uma sala da construção.


– Beto, você dormiu demais. Acho que foi a quantidade de comida, você comeu duas marmitas. Sorte sua que o mestre de obra está reunido com o arquiteto e o engenheiro. Se não, já teria lhe procurado e, lhe encontrado aqui na maior “morcegagem”. Dormindo em pleno dia, estaria em maus lençóis.


– Nossa!  Kiko, tive um sonho estranho. Sonhei que eu era um hippie que fazia uma grande transformação na vida. Após sonhar ser uma formiga, ele queria fazer mudanças profundas em seu destino.


– Aonde você vai?


– Pedir demissão. Não quero mais trabalhar. Serei livre para sempre. A sociedade sufoca minhas paixões mais sensíveis. Na construção do conjunto eu me deprimo e me destruo como um ser capaz de desenvolver minhas particularidades.


Em um quarto de uma casa.


– Lucas, já é quase oito horas. Levanta rapaz. Não vai à aula hoje não é?


– Nossa!  Mãe, tive um sonho terrível.  Sonhei que era um ajudante de pedreiro cheio de traumas e crises. Ele tinha sonhado que era um hippie, que tinha sonhado que era um inseto. Será que foi por causa das formigas que matei ontem na pia da cozinha?


– Não vai à aula?


– Sim! As escolas não me dizem nada, mas sou um aluno. Pertenço a um organismo em construção. Depois da noite passada, percebi o quanto é importante ajudar a fazer um país melhor.


No hospício


– Já acordaram o paciente?


– Sim, ele hoje quer ser chamado de Lucas. Diz não saber mais ler e chorou muito no canto do quarto.


– Por quê? Ele deu algum motivo para mais um ato insano?


– Sim, disse que estava com medo do diretor, dos pais, da família e de outros elementos que ele teima em acreditar que são monstros coletivos, propagandas de uma falsa organização. Disse-me também que cada pessoa deveria construir seus padrões, seu caminho e rejeitar as regras que não ajudou a elaborar. Falou que o sol é elevado não exatamente por causa de seu brilho, mas sim de seu reinado soberano e solitário.


– Faça-o dormir. Dobre a medicação. Não quero perder tempo com ele. É apenas um doente.


Por FRANCISCO RODRIGUES PEDROSA         f-r-p@bol.com.br


 


 


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