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O Lobisomem Boliviano

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Morei uma época de minha vida na cidade boliviana de Santa Cruz de La Sierra. Uma cidade bela, estranha e pobre. Estruturada em falsos anilhos, que separavam suas castas, tinha um clima muito próximo ao do Acre, mas com uma suavidade de fim de tarde que nunca irei esquecer.


Devido à fraca moeda do país, o boliviano, o pouco dinheiro que minha mãe mandava servia para ter lá um estilo de vida que aqui jamais alcançaria. Fazia-me passar por um leão pequeno, escondendo o que eu realmente era: um gato magro que caiu na panela de doce de leite.

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Morávamos na Calle Florida, situada bem num centro comercial, contrapondo modernidade e estilo colonial obsoleto. Uma selva de casas apertadas com sacadas que impediam ver quem passava em baixo. Apenas se ouvia os passos de pessoas seguindo indiferente, como aves migratórias, nas calçadas de lajotas desbotadas.


Do lado direito da rua, éramos quase todos brasileiros. Havia aqui e acolá um uruguaio, um chileno ou às vezes um paraguaio. Imaginava serem todos fugitivos dos vestibulares usados para o ingresso nas faculdades públicas.


Do outro lado a maioria era argentina. Gente bonita com um espanhol próprio, orgulhosa de seu país e sólida na certeza de que Maradona jogou mais do que Pelé.  


Não éramos amigos. A cidade era grande para nós.


Não conheço bem a América do Sul, mas posso garantir que nenhum povo traz nos olhos a marca de tantas derrotas no passado. Uma espécie de mágoa visual, melhor realçada pelo silêncio que nos apresentam, quando os conhecemos mais intimamente, fazendo-nos instantaneamente entender sua dor.


Esse país perdeu para o Chile sua saída para o Pacífico, o rico território de Antofagasta. Ajoelharam-se frente aos paraguaios na Guerra do Chaco e concederam ao território brasileiro uma extensão de terra considerável, numa guerra tonta entre um exército climaticamente despreparado e zonzos seringueiros a mando de avarentos e ambiciosos coronéis de barranco.


A Bolívia é o país mais pobre da parte sul da América. Se não for, podemos afirmar que a parte sul mais pobre que existe do continente. Roubados secularmente pelas grandes potências e seus aglomerados financeiros, essa nação andina ainda teve de sustentar e encarar os ensaios e os ataques das caricaturas imperialistas vizinhas.


Voltava para casa, era tarde, a noite começava a desenhar as sombras das casas. Os animais que labutam nesse horário se aqueciam para mais uma guerra. No céu, como que se esquecendo do recente sol, a lua cheia se mostrava envaidecida com seu brilho superior ao das estrelas.


 Próximo a uma casa de vendas, me deparei com um grupo de manifestantes que protestavam veementemente contra o resultado do vestibular da Universidade Pública da cidade, a Universidade Autônoma Gabriel René Moreno.


 Nunca tinha presenciado aquilo! Exigindo apuração das denúncias, devido ao fato de poucos indígenas terem alcançado as vagas disponíveis, muitos deles me relembravam as figuras dos livros didáticos, quando tratavam das múmias pré-colombianas.


 Num ato de total desespero, tentando mostrar sua dor psicológica maior, os manifestantes costuravam suas bocas, a fim de promover uma greve de fome, dando um caráter trágico, visualmente mais terrível para quem estava presente.


Em um país predominantemente inca, indígena, soou estranho essa superioridade intelectual dos “cambas”, os intitulados brancos. As ruas de acesso à Universidade foram tomadas. Tanto pelos manifestantes, como pela polícia que batia sem distinção de qualquer natureza, não garantindo aos bolivianos nem aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos da violência.


Tive medo de me aproximar, o gás lacrimogêneo, as bombas de efeito moral e as cacetadas destruíam as bandeiras de Che Guevara, a orientação espacial dos revoltosos e deformava as tatuagens dos heróis indígenas presas aos corpos dos dissidentes, que eu não sabia bem o que diziam.

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Perto de mim, numa esquina próxima, um senhor inegavelmente triste alertou-me do perigo que era estar ali.


– Você não tem nada a ver com isso. Mantenha distância! Não deveria estar aqui! Temos a polícia mais sanguinária do continente. Foram anos de regime militar, tiveram tempo de aprimorar o “fazer mal”. – disse-me o lojista protegendo-me com o braço sobre meus ombros, para que eu percebesse que era preciso entrar em seu bazar.


– O senhor consegue ouvir? Há pessoas mortas lá. Não há médicos. Como podem deixar morrer? – relutei indignado, numa mistura de ódio e medo.


– Sempre há e sempre deixam. Será mais um, se acha que sua presença resolverá. Não construa sonhos nessa noite – Ao proferir essa sentença, mostrou-se frio. Após um leve caminhar, suas mãos trêmulas buscaram em uma gaveta velha um livro antigo, visivelmente faltando página e que não tinha mais capa. – Escute Essa frase! É de Edmund Burke:


O uso da força tem apenas um efeito temporário. Até pode subjugar por certo tempo, mas não remove a necessidade de subjugar novamente: e que fique claro que é impossível governar uma nação que deve ser reconquistada eternamente.


É horrível quando alguém utiliza em seus argumentos autores que não são de seu museu literário ou que nem ao menos você tenha visto exposto numa banca de revista. Não entendi o que ele leu, mas deduzi que fosse uma reprovação ao que ocorria. Nessas horas é melhor arriscar. Foi o que eu fiz.


– Mas isso se deve às pressões populares que precisam existir. Parado, não podemos ficar! Devemos sempre buscar as ruas! – Essas palavras proféticas, por acaso aparentando um certo efeito retórico, me trouxeram uma coragem desconhecida. Logo desfeita, quando vi mais um caído devido à rua escorregadia de “porrada policial”.


– Você gosta de carnaval? – Perguntou-me.


– O que? Retorqui-lhe, subindo os ombros repentinamente.


– Está vendo aquele ali do lado, Imune, dentro do carro, apenas excitando as pessoas ao confronto com um alto falante? Está vendo o outro do lado dele bradando forte, aquecendo os ânimos?


– Sim, sim. O que têm eles? Indaguei-lhe.


– Foram parlamentares, há cinco anos. Após deixarem o poder, se descobriu que foram mestres em desviar dinheiro público. Enriqueceram e enriqueceram os seus. Excelentes corruptos que hoje lutam para voltar à “casa das possibilidades”. Dez no quesito fantasia! Os que hoje se encontram na casa não querem dividir o queijo. Fazem tudo. Sim, fazem até o além do tudo. Os de dentro e os de fora são iguais. São ratos que de tanto andar nas nuvens, se apaixonaram pela lua.


Guardo esse livro desde tenra idade. Por favor, leia essa página. – Pediu o senhor, dando-me o livro de aparência que não convidava o contato.


– Em espanhol debilitado, proferi as seguintes palavras desse autor que nunca tinha ouvido falar:


É um erro popular muito comum acreditar que aqueles que fazem mais barulho a lamentarem-se a favor do público sejam os mais preocupados com o seu bem-estar.


Sem noção de espaço e tempo, voltei para casa.


Antes de retornar ao Brasil, tentei visitar esse homem.  Foi em vão! Soube pelos seus filhos que ele tinha morrido num protesto por melhorias sociais de todos os bolivianos. Contrariando o que me disse, comprou sonhos em outras noites de lua cheia. Insatisfeito com os desmandos dos governantes, ele quis lutar por um país mais justo.


Perguntando quando isso tinha acontecido, disseram-me que tinha sido depois de reler um livro guardado há mais de vinte anos. Uma moça, que talvez fosse sua neta, ouvindo o que conversávamos, tomou a frente e disse: ele nunca se conformou com os fracassos que teve ao tentar voltar a ser um político.


Num país, cujo território chega a alcançar os céus, quem sabe se de lá não venha a frase dita por Simon Bolivar: “A arte de vencer se aprende nas derrotas”.


O Acre nunca me deixou esquecer essa cena. Nossa política, nossos heróis poderosos que administram suas arrogâncias, nossos parlamentares egoístas que conhecem as soluções de nossos problemas, mas que não revelam para ninguém, nossos mentirosos “messias”, tudo é um testemunho vivo do que aprendi com aquele homem. Nunca me perdoei por não ter lhe respondido: eu não gosto de carnaval.


 Mas hoje, após a campanha política e os resultados apresentados, agradeço aquele conselho que me disse: “Não construa sonhos nessa noite”. O troca-troca de máscara, o “maniqueísmo” infundado, as piadas cretinas e os maníacos por poder me revelam que ainda estamos numa grande escuridão.


 Esperemos o possível tombo que a nuvens possam dar nesses ciclopes ideológicos, para que um dia tenhamos a destruição dos ratos. A lua deve permanecer.


Na política acriana, ao contrário do que ocorre na lenda, a bala de prata não mata os lobisomens. Na verdade, tornam-se mais fortes, e a ausência desse metal gera uma carnificina partidária medonha e enfadonha, sem rumo ou paradeiro, confinando-nos numa eterna lua cheia.


Por FRANCISCO RODRIGUES PEDROSA      f-r-p@bol.com.br


 


 


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