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Narciso acha feio o que não é espelho

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Não se sabia bem os motivos, tampouco as razões que explicassem porque aquela peça não saia nunca de cartaz. Mesmo depois de décadas, o show de Narciso era sempre procurado, solicitado e indicado pelos conhecedores das artes trágicas e cômicas.


Trágica, porque o espetáculo que ele representava era a perfeita amostra das evoluções absurdas do comportamento dos homens reunidos em sociedade. Um desenlace que faz o choro grudar nas caras cínicas e proibir o lenço da moral e do pudor.

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Cômica, porque as fantasias usadas na encenação faziam a plateia pulular de tanto riso. Trabalho forçado e prazeroso às barrigas que se acomodavam em bundas gordas de uma plateia alegre e de uma cumplicidade velada, radical e arrasadora.


Ontem à noite, um dos cegos do evento, sentando perto do palco, dissera que a permanência, a durabilidade desse representar artístico se devia à capacidade do ator em agradar a todos que lhe prestigiavam o momento e lhe garantiam o pão diário.


Narciso, vaidoso e funcional, filósofo, mas pragmático, sabia conquistar os mais diversos olhares, tocar nos mais diferentes corações. Era na plenitude do termo um grande poeta, artista de primeira, chafariz da praça mais bonita da cidade.


Ingênuo quem achasse que esse homem de mil faces era apenas uma voz a declarar as mais belas canções naquele palco, rasgando suas roupas, rolando no chão e sentindo nos olhos e na face cada palavra triste que pronunciava. Tolo quem imaginasse que ele era apenas uma nostalgia, um espécie de enredo catastrófico de um tango argentino.


Narciso era a pura expressão dos desejos humanos. Narciso era a mais certa porção da música brasileira. Narciso era, acima de tudo, um como nós, um respiro que utiliza o mesmo ar dados a todos.


Isso, dizia um outro cego que assistia à evolução teatral nos fundos, pertos dos poucos que vaiavam o espetáculo. Parece que no décimo terceiro ato, ele alfinetou que a habilidade de Narciso se prendia, amiúde, a clareza com que comprovava seres os homens todos iguais. Não importa a posição, a fila ou o traje usado para testemunhar à peça. No fundo, no âmago ou entre os dedos das mãos que agem, há artifícios e truques que nem o melhor mágico pode esconder.


Diziam os de fora, sem ingressos para a festa, que os espectadores de dentro do teatro se resolviam em ledos enganos. Erros que, de modo tal, os faziam esquecer da maior e mais bela verdade: a força de Narciso, a solidez de suas estruturas que garantiam o teatro em pé, era só e só a fiel certeza da necessidade de existir personagem dessa eminência singular.


Acampados, alertas e com moedas nas mãos, os grupos dissidentes, antigos dissabores e críticos da arte em cartaz, se preocupavam em jamais permitir a falta de repertorio de Narciso. As conveniências políticas, ideológicas e as oportunidades mais criticáveis eram com um lema, estampados em bandeiras multicoloridas que diziam: o show tem de continuar.


No meio dessa ciranda tendenciosa, no cantar desse pássaro que inconscientemente desce as montanhas sem se lembrar dos poucos dias de vida, havia duas grandes contradições primorosas.


Aparentemente, os espectadores imaginavam se aproveitar fartamente do artista. O medo da prática, o receio da fala grave, faziam os covardes usar os dons do artista, adquiridos nas experiências do contato com as feras por longos anos.


Ao manter Narciso com sua peça, defasada e repetitiva na essência, os cegos se sustentavam num estranho jogo do domador que dorme com o tigre faminto, imaginando travesseiro, na companhia que lhe quer bem dentro da jaula.


Narciso era uma fênix, ressuscitava em cada sessão, mudava suas vestimentas de acordo com a nova peça que surgia. Seu camarim era vasto, satisfazia a todos os corações comovidos.  Sua voz grave e seu timbre de cantador davam a garantia de que sempre estaria ali.


A segunda contradição era justamente essa: se do mito vinha a destruição, pois o reflexo lhe trouxe sentimentos fatais, Narciso mantinha-se vivo e forte, mesmo tendo tantos iguais a ele. As divergências estavam no espaço: um cantava para a plateia e ressaltava poemas proibidos, outros se quedavam a nunca deixá-lo calar sua voz.

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Se houver fim para esse espetáculo, os aplausos não serão capazes de mostrar que lá dentro, sem a ciência dos cegos, não havia tantos eventos. Era tudo caricatura rústica de personagens aproveitadores que utilizando pouca luz, confeccionavam seus sonhos com jogos de luz e sombras.


Por FRANCISCO RODRIGUES PEDROSA    f-r-p@bol.com.br


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