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Os Dois Lados da Rosa

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Uma noite mal dormida se juntou a uma manhã estranha e bela. Nada mais!


Não pelo álcool da noite passada, nem pelas tantas horas que tiveram de gastar na festa de Yolanda, a prima de Vilma. Mas é que o sangue conduzindo os fervores etílicos até o cérebro desperta paixões, taras, caprichos e auxilia na realização de desejos escondidos abaixo do impensável.

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As trocas de olhares, os abraços suaves, as mãos que não se desgrudaram um só instante, foram operárias e motivaram o casal a inovar naquela noite que terminava chuvosa. Talvez para combinar com os corpos que sangravam suor, orvalho erótico perdido na imensidão da noite. A porta da casa ficou aberta, e parece que as roupas do casal receberam os ventos que sopravam no chão da cozinha, ferozmente.


Naquele prestar de contas, naquela prova de quem era sua dona, Vilma fora além do combinado pela sociedade. Fora muito mais que a mulherzinha que aceita o mandar do macho, abrindo as pernas passivamente à espera do banho egoísta e singular dele. Dessa vez se fez menina levada, vagabunda de mais alto grau: ultrapassou os limites fonéticos dos sussurros cotidianos básicos.


Os deuses eróticos supuseram que a mola maior para arte realizada na cama tinha sido o ciúme da esposa ao ver que as amigas e desconhecidas não tiravam o olho da camisa branca que tendenciosamente colava no bonito corpo do marido, devoto da boa alimentação e do zelo assíduo na academia do bairro.


Depois de levantar e ver o estrago do temporal, Durval teve medo de dizer que sentia a brisa daquela manhã graciosa. Imaginou que isso não caía bem para ele. Afinal, tamanha sensibilidade era mais e melhor confessada pelo sexo feminino. Ao sair para o quintal, para prender os cachorros, desfez rapidamente a sensação de alegria e procurou algumas espinhas no músculo direito, a fim de mostrar o homem que era.


No trânsito maluco de Rio Branco, parado no sinal, percebeu que o chaveiro precisava ser mudado, bem como o meigo adereço colado ao para brisa do carro.


Não se importou em lembrar que os objetos tinham sido comprados pela esposa e a ele dado com o maior carinho. Eram rosados com leves pintas amarelas. Não combinavam com sua barba e sua voz grossa.


Pouco produziu no trabalho. Pouco falou com os amigos. Pouco do rotineiro se realizou. Acessando sites que debatem a sexualidade masculina, Durval era um homem em pensamentos.


Ao meio dia inventou uma desculpa qualquer e não foi para casa. Iria almoçar por lá mesmo, tinha uma reunião com os “burocréis” e com os papéis da administração. No fundo, não queria vê-la. Estava com vergonha, sentia-se fragilizado, indeciso em suas convicções mais tradicionais.


À noite, ao chegar a sua casa, Durval não gastou muitas palavras. Alegando uma falsa forte dor de cabeça elegeu o banheiro para guardar-se de todos. Era ele, por um bom tempo, o espelho e as memórias do que acontecera na cama passada.


A janta não provou, não reclamou da derrota do time e cedo buscou a cama sem ter olhado nos olhos da mulher, uma vez se quer. Tinha decidido reclamar, depois, com a esposa, às vezes em que encontrava calcinhas dela misturada às suas cuecas na gaveta do guarda-roupa.

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Deitado, sigiloso e formal em sua postura, não conseguiu dormir. O leito era um imenso deserto que se fazia trágico não pela sua imensidão, mas pela certeza de que a falta de sono lhe fazia um anacoreta. Um soldado ermo com energia infinita para sentir no rosto todos os ventos quentes, sentir nos pés todos os grãos de areias. Naquela noite, naquela singular noite, Durval presenciou um turbilhão de sentimentos que se alternaram em bons e maus.


Algumas vezes acreditou que o que viveu poderia ser prova de que seu casamento buscava o novo, o inusitado, o curioso. O que sentiu na pele poderia ser mostra de que não era um mero homem conceitual. Poderia ser sinal de que era livre e sua sensibilidade casava com os novos carinhos da mulher. Estava, quem sabe, solidificando mais e mais seu laço afetivo.


Em outros momentos, sentia pesar, amarguras e dores que invadiam seu triste coração. E se ele não fosse o que ele achava que era? Teria coragem e tempo para se definir nesse mundo preconceituoso e machista? E os filhos? Aceitariam as mudanças e as repentinas aventuras que seu corpo queimava em viver? Não seria melhor, em nome da família, tentar esconder e desmotivar chamas dessa estranha surpresa?


Durval sorriu. Como era difícil entender isso! Grandes dúvidas eram as raízes de toda essa árvore de questionamento. Por que a mulher fez aquilo? Por que sua mão invadiu, intensamente, partes do seu corpo que a masculinidade julgava intocável? Por que os dedos dela adentraram triunfantes em seus conceitos mais honrosos? Por que sua língua vasculhou sensações que ele julgava inexistente, indignas de serem sentidas por quem sempre se achou homem?


Durval chorou. Chorou nas dolorosas e maiores de todas as dúvidas: que arrepio era aquele que varreu seu corpo? Por que tinha gostado? Deveria e teria o direito de sentir isso de novo?


Por FRANCISCO RODRIGUES PEDROSA    f-r-p@bol.com.br


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