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O retorno ao Jardim do Éden

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Já fazia tempo que sabia. Mas na noite passada pode constatar com os seus próprios olhos os dois saindo de um local que ele vivia dizendo inadequado para ela.  Os homens não sabem trair. Algo desse gênero exige tramas, inteligência, suavidade e detalhes. Quem sabe, porque dotado de músculos, o sexo masculino abdicou de uso aprimorado do cérebro.


Não existe traição perfeita para os homens. Existem mulheres que aceitam o engano. Permitem, toleram, por avaliar que os impactos e os efeitos da revelação são bem maiores que o fingimento de uma falsa inocência.

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Samara já tinha visto encontros no celular, fios de cabelo em peças íntimas, fracas marcas de batom pela nuca, renúncias sucessivas em sua cama e provas que manchavam as roupas.


Amigas que lhe aconselharam sobre a normalidade do ato eram várias. Recebia todos os dias convites para o clube daquelas que desprezam os homens em suas aventuras e os engolem pela manutenção de algo que as mulheres veem além da rude palavra lar.


Depois que descobriu a falsidade conjugal, tudo naquela casa tornou-se diferente, agonizante. Até o jeito do marido tinha mudado, falar com ele era algo que doía. Na cama, os carinhos deles eram para ela como a faca do carrasco em seu sagrado ritual. Olhá-lo nos olhos, jamais. Na novela, no filme ou na música, qualquer coisa fazia lembrá-la da divisão forçada, tudo enfatizava a traição dele.


Naquele dia acordou tarde. Nem ouviu se houve reclamações pela falta do café da manhã. Tocando no rosto em frente ao espelho, sentindo os anos que lhe figuravam as rugas, buscando detalhes de seu perfil, perguntou para si de que valeu todos esses anos ter sido a esposa perfeita nas tarefas de casa, se não conseguiu ser a mulher insubstituível na cama.


Andando de um canto ao outro, Samara buscava saída em sua mente. Na ânsia de apagar o presente, formulava ideias de origens machistas que aprendera com a própria mãe: os homens traem por divertimento”, “todo homem precisa dessas coisas, o importante é que ele vem para casa”, “você é que é a mulher dele, as outras são apenas usadas”.


Ao abrir seu guarda roupa, tirou uma velha caixa onde guardava antigas lembranças de uma época feliz e pura. Cartas apaixonadas para o então marido, declarações de amor eterno, fotos no aniversário da prima, e até um urso pequeno, ainda lacrado, ganhado no dia do noivado com uma frase na barriga que nunca tinha saído de seus olhos: eu te amo para sempre.


Arrancando pétalas das flores do jardim em frente sua casa, juntando as que faleciam sobre o solo sujo, Samara percebeu que na vida não existe nada que seja suficientemente grande que perdure e não se flexione ao dessabor do tempo. A felicidade, o amor e qualquer outro sentimento que visite essa linhagem, não consegue manter-se além do suportável.


Essa instigante perseguição ao amor eterno é sinal de que os seres humanos amam o inalcançável, adoram o inatingível e buscam sempre o que as mãos não podem tocar. No fundo de nossa essência, ao procurarmos o não dado, queremos valorizar nossas frágeis migalhas conquistadas, dando ares de dramaticidade a um enredo que pintamos com cores trágicas.


Folheando suas frases de adolescente, lembrou-se de um poeta que dizia que nunca seremos felizes na condição plena. Os segredos consistem em aceitar o que agora nos faz viver. Não temos o direito de ter medo do frio da vida.


Esse é o mistério revelado que guardamos em nossas pretensões de solidez emotiva: uma canção de roda entre a presa e a matilha, ou um soldado ferido pela própria lança. Não devemos subestimar as pedras! Esse é o momento cristalizado em experiências que podem ser efêmera, mas que se marcam pela intensidade da chama que nos aquece. Só o estar no mundo já é uma perigosa escalada.

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Quem sabe seja essa a razão que nos faz melhor: nunca termos tudo de uma só vez. Era inegável que teve momentos bons com ele. A natureza tem suas vaidades e nos fornece a dose relativa de termos alegria em ser. É possível que a reunião de desordenadas flores ao longo de nossa existência, vivências, apreços, carinhos e desilusões, cheguemos à conclusão que colecionamos um belo jardim.


Uma fina chuva dava formas estranhas à terra que vingava seca até então. Ao entrar para casa, confiante de que tinha feito a maior descoberta, Samara pôs-se a gargalhar dos homens.


O riso consistia em imaginar que as imperfeições masculinas tinham causas. Pode ser que elas sejam resultados de que o primeiro homem estava dormindo, quando as mulheres foram criadas. Um sono profundo que deixou consequências de estupidez e arrogância neles.


Esse era o segredo: a mulher viu primeiramente o homem, teve tempo de desenvolver sentimentos mais nobres, caleças mais seguro para a viagem rumo à estação verdade.


Em abissal guerra dos opostos, na desilusão da taça que se quebra com um vinho bom, fora ele que se acordou despreparado para iniciar o que ela já tinha começado. Esse era o maior equívoco no Jardim do Éden


Ao meio dia, antes de ele sentar-se à mesa, Samara, com as mãos escondidas atrás das costas, sorrir para ele e lhe presenteia com uma linda camisa e um relógio que há tempos ele desejava possuir.


Dando-lhe o abraço mais consciente de sua vida, ela diz: feliz aniversário! Suspirando com o peito machucado pela maior dor sentida, ela pensa: você não existe mais pra mim, prepare-se para a eterna noite de sono.


Dessa vez, uma gênese solitária. Não nasceria outra mulher de um sono tão profundo. Ele morreria no ano em que nasceu.


FRANCISCO RODRIGUES    –        f-r-p@bol.com.br


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