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E agora José?

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José Carlos era um homem direito, trabalhador e honesto. Recém-chegado aos cinquenta, mantinha ainda o vigor dos homens que choram a desfiliação do clube dos trinta anos.


Natural de Tarauacá, Carlinho, como era conhecido, veio ainda menino, com os pais, disputar um lote de terra nas proximidades do que hoje é o abandonado Bairro da Paz. Em cada inverno, cheia ou repiquete, a família sempre pensava se tinha valido à pena ter lutado tanto, na época da invasão, por um quintal ali.

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Seus parentes tinham escolhido invadir outras plagas e, se não eram lá muito melhores, ao menos não sofriam com a forte poeira do verão e o chiclete, mosquitos e os sapos no inverno.


J. Carlo trabalhava o dia inteiro abastecendo caminhões de material de construção numa grande loja da cidade. Por ter tido que trabalhar muito cedo, Carlinho não sentia o pesado labor que desenvolvia diariamente. Para o patrão, “Seu Jota” era um exemplo a ser seguido. Era um mouro amazônico!


Não teve tempo para uma adolescência de revoltas e frustações existenciais. Não conheceu o Rock. A única amostra de que não era cem por cento “burro de carga” era uma tatuagem mal feita, no braço direito, com uma palavra de inglês temerário e nebuloso: “laion”.  Isso, e mais uma fraca lembrança de que uma vez experimentou umas coisas que lhe deixaram a cabeça tonta, eram as únicas provas de que J. Carlos viveu um pouquinho as contradições e tolices que a juventude tanto oferta.


Só isso. O resto foi trabalho e responsabilidade para sustentar os filhos que começaram a vir quando nem bem tinha vinte anos. Difícil época em que perdia também o pai e que seus dentes começavam a mostrar sinal de cansaço.


Certa tarde ao chegar a sua casa, soube até pelos gatos magros que perambulavam pelos quintais, que o vizinho, “Seu Zezinho”, tinha comprado uma TV Plasma 50 polegadas, 3D Full HD 4 HDMI Conversor Digital Integrado e mais um monte de letrinha e números que nem bem sabiam o que queriam dizer.


Era a noticia do dia! Ninguém deixou escapar que adoraria ter uma daquela. Pensavam que a posse daquele artefato maravilhoso seria capaz de evitar até mesmo a morte. Família mais feliz que aquela, não existia.


Deixando bem aberta a porta da frente, “Seu Zezinho”, piedoso que era, deixava amostra de seu troféu a todos que passassem pela rua e por acaso olhassem para o lado da casa dele.


Nem na época da invasão se viu tanta gente passando por ali. A Tevê era brilhosa, tinha som agradável, cheia de entradas e saídas. Era grande e com uma imagem tão nítida que até os comerciais passaram a ser fonte de grande admiração. Nunca tinham visto algo igual.


Na casa ao lado, humilhado, agonizando uma inveja terrível, J. Carlos estava diferente. A compra do vizinho lhe fez mal! Ouvir aquele som alto e aquelas vozes rindo trazia-lhe mais dor que a enterrada de um punhal quente em seu peito machucado.


A diferença era muito grande! Sua televisão era ligada com a ajuda de um alicate pequeno e a antena era uma singela palha de “Bombril”, seguida por um fio que terminava no teto da casa.

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Tudo estava errado!


Reclamou com a mulher sobre a janta. Bateu na filha por causa da casa suja. Não quis brincar com a caçula e, até mesmo o cachorro, que sempre adestrava com um pedaço de pão antes do banho, foi vítima de seu destempero: levou para sua casinha um pesado incômodo advindo de um chute forte nas costelas magras que lhe desenhavam.


Os deuses do sono não lhe visitaram! Sua cama era sua ilha. Não tocou a esposa. Nem percebeu seus movimentos insinuantes, tentando espalhar o perfume novo, comprado do catálogo da amiga que tinha acabado de chegar. Infortunadamente, a noite foi pequena para seus pensamentos.


Pela manhã, comprovou realmente que sua vida era um saco de infelicidade. A grade da cama continha uma ripa quebrada bem no meio, fazendo do colchão um molde para poço artesiano. Não havia mais caixa de papelão na cidade que desse jeito naquele buraco negro.


A penteadeira, com gavetas velhas e desmontando, tinha se casado com dois tijolos há mais de três anos para lhe garantir a postura. Sem jamais poder ser movida do canto, uma toalha grande escondia o falso truque.


J. Carlos percebeu também que as louças sem cabos mais pareciam latas de cervejas jogadas em frente do bar. A caçarola tinha uma crosta de gordura solidificada tão grande que era provável que o alumínio dela nem mais existisse. Os copos, pelas letras das marcas gravadas no próprio vidro, eram todos reaproveitados do milho verde comprado para a ceia do natal ou das massas de tomates que às vezes eram usadas.


Nem caixa d’água tinha. Era um camburão com mais de seis mil remendos de Durepox.  Fazendo uma análise holística de seu lá, espantou-se ao ver como era feio aquele jirau com lodo, cheio de sementes de feijão em baixo, reivindicando a germinação e resistindo serem levadas por água suja, de um rego raso que seguia torto desestruturando o feio quintal.


Tudo ajudava a se sentir menos do que acreditava ser. Era preciso mudanças. Urgentes mudanças. Mas como? Sem estudo, sem outras qualificações, sem tempo suficiente para reconstruir sua vida, sabia que a missão era ou tocava as raias do impossível.


Nessas horas, a imaginação é nossa melhor amiga. Imaginou ganhando na Mega Sena e comprando uma televisão de 1500 polegadas capaz de fazer os moradores do Bairro Rui Lino assistirem ao que passava em sua casa. Imaginou sua mansão com uma área grande, ventilada e cheia de empregados apressados para mantê-la limpa.


Imaginou-se mais gordo! Seria importante! Com todo esse dinheiro poderia ser presidente do continente americano. Um líder mundial, ativista engajado contra todos os que exploram os trabalhadores braçais. Trocaria o guarda roupa da família, sete carros para cada filho seu, um avião para a esposa fazer as unhas em Paris aos sábados à tarde, e colocaria ouro nos dentes para que toda vez que risse, cegasse quem com ele tinha o privilégio de tratar.


Voltando para uma realidade mais próxima, J. Carlos poderia obter um aumento do patrão. Por que não? Era o funcionário mais antigo. Confiável, admirado e com muito crédito com o Seu Alencar.


Lembrou-se que nas horas vagas, comprava lanche para o chefe, já dormiu um mês inteiro na casa dele, quando o patrão saiu de férias para o Rio de Janeiro e, até denunciava os roubos dos colegas de trabalho no estoque da loja.


Nem tomou café da manhã! Otimista, partiu cedo e até se envergonhou da bicicleta que falhava nos freios. Estava cheio de esperança. Conseguindo o que pretendia, compraria também uma televisão daquela do “Seu Zezinho”.


Ao chegar meio dia a sua casa, triste e com uma dor profunda no coração, J. Carlos amargurava o maior NÃO de sua vida: o patrão recusara o pedido por aumento salarial. Pela primeira vez viu “Seu Alencar” como um monstro de doze bocas e vinte seis pernas. Tudo o que tinha feito, tudo o que tentou mostrar, a disciplina, a retidão, a honestidade, de que serviram?


Trancou-se no quarto e de lá apenas saiu quando arrombaram a porta para retirar aquele corpo sangrando, fruto de sete facadas no peito. Estava deitado perto da cama com uma cocha dos tempos que sua mãe lhes protegia das friagens de julho.


À noite não teve velório! Todos preferiram assistir ao triste acontecido na televisão do “Seu Zezinho”. Naquela tela plana, limpa e sedutora, a realidade era muito mais bonita.


Era uma TV Plasma 50 polegadas, 3D Full HD 4 HDMI Conversor Digital Integrado e mais um monte de letrinha e números que nem bem sabiam o que queriam dizer.


Sim, era uma TV Plasma 50 polegadas, 3D Full HD 4 HDMI Conversor Digital Integrado e mais um monte de letrinha e números que nem bem sabiam o que queriam dizer.


FRANCISCO RODRIGUES    f-r-p@bol.com.br


 


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