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Calçada da fama

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Para uma criança pobre, a escola é antes de qualquer coisa um local onde ela pode comer, ter o que não tem em casa. A sirene tocando para o intervalo é como som de boa ópera. Tanto pela interrupção das chatices dos professores, como pelo convite a desvendar o maior enigma do aluno carente: o que temos pra comer hoje?


Na escola onde estudei, havia uma lanchonete dos meus sonhos. Mas para lá só iam os mais afortunados que pudessem comprar uma saltenha e um refrigerante de 300 ml.

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O restante não tinha muito que lamentar. A fila no refeitório era enorme e de vez em quando a merenda acabava, deixando os mais lentos sem a bolacha, acompanhada com o famoso leite de burro, ou as farofas secas de farelos de carne ou ovos, servidas em pratos de plástico marrom, salpicadas com algumas poucas verduras.


Não me lembro de uma vez que eu tenha deixado de saborear o cardápio escolar. Da sopa de galinha à paçoca, a fila para mim era tão natural como o ar é para os pássaros.


Certo dia, tinha ido à escola todo faceiro, me exibindo com meu sapato novo que minha mãe tinha comprado. Não lembro bem o modelo, mas me recordo que a compra dele acompanhava um relógio de plástico que jurei para os meus colegas ser a prova d’água.


Convidado a fazer o teste, passei longe de qualquer fonte ou recipiente desse produto. O bebedouro, a pia do banheiro ou o suor, conspiravam contra mim.


Buscando sempre evidenciá-lo, várias vezes simulei amarrar os cadarços com o único intuito de demonstrar ainda mais meu novo presente. Nesse dia não participei do futebol com bola feita de saco, cheio de papel. Poderia comprometer a estética de meu “piso”.


Apesar da satisfação com o novo calçado, após o intervalo, percebi que ele me apertava. O longo tempo na fila da merenda pode ter me atrasado. Quem sabe, a carreira para chegar à sala no tempo certo, pois nesse dia pude repetir o rejeitado arroz doce, tenha acelerado o desconforto com o material de couro, recém-submetido a um pé grande, chato e gordo.


Resolvi tirá-lo, enquanto acompanhava as explicações da professora Silvana sobre as palavras proparoxítonas. Sentindo-me mais aliviado, foi mais fácil aprender que as palavras com três sílabas deveriam ser acentuadas. Passei a escrever o nome da professora e o meu assim: Sílvana e fráncisco.


Onze horas, quando bateu a campa, como se fosse largada de uma corrida de cem metros rasos, a sala inteira disparou em alta velocidade, se lamentando profundamente ter terminado aquela aula tão “interessante”.


Eu fiquei!


Alguém tinha pegado um pé do meu sapato novo.


Meu pai do céu! Onde estava o meu sapato novo?


A professora, que ainda arrumava o material didático espalhado na mesa, percebeu a minha aflição e, ao olhar para um pé descalço, saiu gritando para que a inspetora não abrisse o portão da frente. Ninguém iria sair enquanto meu sapato novo não aparecesse. Todos voltaram pra sala me odiando, por eu ser o motivo da infelicidade deles.


– Quem foi que pegou o sapato do Francisco? Só irão sair daqui quando esse sapato aparecer. Se não disserem, vou chamar os pais de vocês e a polícia. – sentenciou a professora, recebendo apenas de mim total apoio, demonstrado num leve balançar de cabeça e de uma mão que tentava enxugar as lágrimas.

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– Professora, todo mundo vai pegar a culpa por ter desaparecido esse sapato? Poxa vida! Vai ver ele perdeu no intervalo e já entrou sem ele. – resmungou uma menina adepta a saias cumpridas, e que nunca rezou o Pai Nosso com a turma. Era de uma religião estranha que nós, católicos, nem entendíamos bem o porquê da existência.


– Se tivesse escrito “fui eu” na testa de quem fez essa brincadeira sem graça, só ficaria ele aqui. Mas como não tá né, vai ficar todo mundo. Esbravejou a professora, dando prova do que eu sempre suspeitei: ela também não gostava daquela menina esquisita.


Após dez minutos, apareceu a primeira pista. Um menino, que só sabia dormir em sala, disse que viu não sei quem jogando meu sapato pelo muro. A professora pediu ao zelador que fosse confirmar a informação apresentada, além de solicitar do dorminhoco mais detalhe sobre o sujeito que empreendera tamanha maldade.


Apesar da pressão, o rapaz disse que não sabia, pois apenas viu o lançamento do sapato, não notando quem foi a pessoa que tinha saído para tomar água.


O “soneca” fora preciso! Tinha dado um tiro certo! Após checar as informações do delator, o zelador voltava com o meu sapato em uma das mãos.


Minha felicidade foi tão grande com o desfecho da história que nem quis saber quem tinha sido o autor do feito. Calcei-o e fui correndo para casa. Não reclamei do aperto do calçado. Não reclamei da pisa que peguei da minha mãe por ter chegado tarde. Não reclamei de que no mundo, independente de classe sociais, independente de ser rico ou pobre, sempre haverá pessoas que não aceitem sua felicidade.


Sempre teremos pessoas ao nosso redor que não suportarão nos ver feliz. Nem que sua alegria se resuma a coisas pequenas, como um sapato de qualidade duvidosa que não durou três meses ou a um relógio que rasgou a pulseira no primeiro contato físico de uma partida de futebol.


Hoje, depois de tanto tempo, não tenho mágoas, rancor ou ódio de quem tenha feito isso. Apenas carrego comigo uma grande indagação: será que meu relógio era à prova d’água?


FRANCISCO RODRIGUES    –       f-r-p@bol.com.br


 


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