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A carnavalização da política brasileira: vamos rir um pouco?

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Tayson Teles é acreano, articulista, escritor, poeta

“Os ratos festejaram o fato de os homens estarem dissecando uns aos outros. Os demais animais não aceitaram o convite para as festas, por sugestão de um cachorro que disse: “Século virá em que a mesma cousa nos aconteça”. O rato, no entanto, respondeu: ‘Mas até lá riamos!’ ”.
Machado de Assis

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A política é várias, não é uma. É diferente em todos os lugares do mundo. Mas, não é por isso que podemos categorizá-la e crer haver uma política pátria. Assim como a “identidade”, não há política caracterizadora de lugar algum. Todos os lócus possuem resquícios de culturas, tradições e pensamentos de vários outros, o que é resultado da forma de colonização do mundo. Dessa maneira, em todo o planeta a política é uma “mistureba geral” de várias formas de se fazer política.


Porém, fazendo uso da categoria “carnaval” tanto estudada por Mikhail Bakhtin, filósofo russo marxista nascido em 1875 e falecido em 1975, podermos dizer que a política brasileira é como o carnaval. Estamos sendo irônicos? Não! Falamos do carnaval bakhtiniano e não em tom de menosprezo para com nossa “respeitável política”. O carnaval também não é igual em todo o mundo, mas falamos aqui de uma ideia abstrata de carnaval, trazida por Bakhtin (1987) como a festa em que manifestações várias de riso opõem-se à cultura oficial, ao tom sério das normas diárias, à Religião, à Economia, ao Direito etc.


Disse o filósofo russo:


Os espectadores não assistem ao carnaval, eles o vivem, uma vez que o carnaval pela sua própria natureza existe para todo o povo. Enquanto dura o carnaval, não se conhece outra vida senão a do carnaval. Impossível escapar a ela, pois o carnaval não tem nenhuma fronteira espacial. Durante a realização da festa, só se pode viver de acordo com as suas leis, isto é, as leis da liberdade. O carnaval possui caráter universal, é um estado peculiar do mundo: o seu renascimento e a sua renovação, dos quais participa cada indivíduo (BAKHTIN, 1987, p. 6).


A nossa política, brasileira e acreana, é como o carnaval por quê? Bem, igualmente ao carnaval nossa política deveria ser para todos. Deveria ser feita por todos e para todos. Todavia, é erigida por poucos e para poucos. Desse modo de se fazer política resulta que o carnaval, enquanto politica pública – uma festa geralmente bancada pelo Estado, também não atinge a todos. Há pessoas que não têm o que comemorar/festejar. Não vão “pular carnaval”, porquanto têm de se quedar em casa preocupadas com o que comer no dia seguinte, com que trabalho “arrumar”.


Afora isso, como o carnaval em alguns aspectos, nossa política beira à escarnia. No parlamento pátrio, de modo geral, não se obedecem a normas, regimentos, procedimentos diversos. Não são engendradas leis que beneficiem direta e imediatamente o povo. Os políticos riem, se cospem, se xingam. Gravações telefônicas de operações da Polícia Federal são divulgadas e “descobrimos” como se tratam nossos “representantes”. O pior é que tais “autoridades” ainda têm a petulância de criticar grupos de pessoas como os indígenas, por exemplo, os quais conseguem se reunir, conversar, discutir sem se desrespeitar – chamam-nos de “incivilizados”.


Igualmente ao carnaval, quando “todo” o povo o vive, na política os políticos não conhecem ou vivem outra coisa senão seus festejados mandatos. As benesses, foros privilegiados, benefícios pecuniários, motoristas particulares, carros oficiais, apartamentos funcionais, viagens pagas com numerários públicos são incontáveis. Bakhtin (1987, p. 6) aduz que o carnaval antigamente era uma festa “concebida como fuga provisória dos moldes da vida ordinária (isto é, oficial)”. Nossos parlamentares, de revés, fogem da vida ordinária/comum do povo e, portanto, vivem um carnaval todos os dias do ano. Vendem-se. Mudam de opinião. Se forem pobres, no poder mudam até seus corpos, o jeito de vestirem-se – alguns de fato provisoriamente, mas outros para sempre!


Talvez haja, entretanto, uma tênue diferença entre o carnaval e a política brasileira: no carnaval o povo ri do rei, dos governantes, extravasa – um riso inócuo, pois a maioria dos poderosos prossegue se dando bem, roubando e/ou malversando o dinheiro público etc., ao passo em que na política são os poderosos (a maioria deles) que riem do povo!


Segundo Bernardi (2015), Bakhtin percebeu que na Idade Média “pela linguagem contaminada pelo riso […] o homem do povo tomava consciência crítica da existência de dois mundos – o mundo oficial, normativo, onde viviam os donos do poder, e o mundo extraoficial, onde viviam os homens oprimidos pelo poder” (BERNARDI, 2015, p. 78-79).


São de fato interessantes os estudos bakhtinianos sobre o carnaval. Bakhtin verificou, relendo Rabelais e Dostoievski, que o povo ao festejar o carnaval na medievalidade, ao ver aquela festa sem rédeas, sem leis, sem padrões, percebeu que a vida normal, quando não havia carnaval, era diferente e não se podiam fazer as mesmas coisas; logo, na vida ordinária, havia exploração e opressão. Foi uma grande “descoberta” do povo.

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Bakhtin se inspira nisso para dizer que também podemos, nós “modernos”, nos libertar de nossos contemporâneos problemas ideológicos, das amarras sociais que nos predem. Para tal precisamos pensar! Como vemos o carnaval atualmente? Não poderia a nossa vida inteira ser um carnaval? Por que somente a dos políticos o é? Os direitos sociais são deveras direitos fundamentais. Nessa perspectiva, os homens e mulheres que são privados de seus direitos fundamentais, direitos humanos, “são privados não do seu direito à liberdade, mas do direito à ação; não do direito de pensarem o que quiserem, mas do direito de opinarem” (ARENDT, 2007, p. 330). Por que, então, somos livres (em tese) apenas no carnaval?


Por faltar tudo nesta nação é que nos dão o carnaval a cada ano? Para nos divertirmos, nos embriagarmos e inebriados pelos brilhos e luzes esquecermo-nos do que necessitamos e eles, podendo, não nos dão? No Acre, agora o carnaval é organizado por alguns do povo em parceira com o Estado. É uma festa democrática! Será mesmo?
Disse o “latino” Quijano (2005, p. 240):


Toda sociedade é uma estrutura de poder. […] Toda estrutura de poder é sempre, parcial ou totalmente, a imposição de alguns, frequentemente certo grupo, sobre os demais. […] se um Estado-nação moderno pode expressar-se em seus membros como uma identidade […] os membros precisam ter em comum algo real, não só imaginado, algo que compartilhar. E isso, em todos os reais Estados-nação modernos, é uma participação mais ou menos democrática na distribuição do controle do poder.


Quais os objetivos do carnaval? Ah!, deixemos de “lero lero”, “blá, blá, blá”, nos arrumemos e vamos à gameleira. É carnaval no “melhor lugar do mundo para se viver”! Divirtamo-nos neste mundo em que para 7 bilhões de pessoas são produzidas em média 12 bilhões de toneladas de alimentos e, mesmo assim, 40% dos habitantes do planeta são subnutridos, pois muita comida é jogada no lixo – por todos nós. Divirtamo-nos auscultando os Engenheiros do Havaí que propalam: “não adiante mesmo ser livre se tanta gente vive sem ter como comer!”.


Divirtamo-nos. Enlouqueçamos. Corramos à distribuidora mais próxima e compremos várias caixinhas de cervejas. Temos este direito! Mas, façamos como Van Gogh, rememorado por Sacadura Rocha (2011), que cortou uma orelha para não escutar, pintou a si mesmo e “entre uma coisa e outra, jamais deixou de pintar os girassóis, os homens e as mulheres do povo trabalhando, os miseráveis comendo batatas, a Bíblia, os sapatos e as botinas carcomidas e furadas, uma caveira, crianças, velhos, angústias, estrelas e campos floridos” (SACADURA ROCHA, 2011, p. XVII).
Sorríamos! Sim, sorrir! Sorria, caro(a) leitor(a). Mas, como sorrir em meio a tanta desgraça? Falamos de sorrir não como remédio e sim como alternativa. Disse Bakhtin sobre o riso:


[…] o riso tem um profundo valor de concepção do mundo, é uma das formas capitais pelas quais se exprime a verdade sobre o mundo na sua totalidade, sobre a história, sobre o homem; é um ponto de vista particular e universal sobre o mundo, que percebe de forma diferente, embora não menos importante (talvez mais) do que o sério; por isso a grande literatura […] deve admiti-lo da mesma forma que ao sério: somente o riso, com efeito, pode ter acesso a certos aspectos extremamente importantes do mundo. […] o riso é ou um divertimento ligeiro, ou uma espécie de castigo que a sociedade usa para seres inferiores e corrompidos (BAKHTIN, 1987, p. 57).


Sejamos, então, corrompidos. Risonhos corrompidos de escolhas éticas responsáveis, justas, alegres, “verdadeiras”. Estudemos, leiamos, nos qualifiquemos a fim de não acreditarmos em tudo o que a sociedade nos fala e, então, externemos risadas de suas artimanhas, estratégias, enganações. Não em tom egocêntrico por possivelmente estarmos à frente de outras pessoas, mas somente em tom emotivo-volitivo de satisfação por nossas vidas terem valido à pena, terem tido uma razão de estar, não de ser – pois não sabemos o que é a vida, mas de estar, de termos existido de modo único, particular, irrepetível!


Bakhtin (1987) lembrou-nos que Deus ao homem submeteu o mundo e apenas a este homem deu o dom do riso para que se divertisse. Os outros animais não riem. “O riso, dom de Deus, unicamente ao homem concedido, é aproximado do poder do homem sobre a terra, da razão e do espirito que apenas ele possui” (BAKHTIN, 1987, p. 59).


Embrenhemo-nos no riso. Tenhamos o riso como arma, visto que “o riso supõe que o medo foi dominado. O riso não impõe nenhuma interdição, nenhuma restrição. Jamais o poder, a violência, a autoridade empregam a linguagem do riso” (BAKHTIN, 1987, p. 78). Mas, é para rirmos de nossos dominadores e prosseguirmos em domínio? É para rirmos de nossos políticos malfeitores que não cumprem a Constituição Federal de 1988 e prosseguirmos com fome, sede, sem escolas, sem universidades boas, sem lazer, segurança pública, saneamento básico etc.? Apenas o riso é alguma vitória? Rir nos faz melhor do que eles? Estas são indagações complexas!


Não devemos querer ser melhores do que ninguém. Todos somos únicos e viver não tem álibi – quando pensamos em viver, já estamos vivendo. Contudo, devemos sim, com efeito, valorizar o riso como nossa maior arma. “A sensação aguda de vitória conseguida sobre o medo é um elemento primordial do riso” (BAKHTIN, 1987, p. 79) nos lembra Bakhtin ao falar sobre o carnaval medievo – naquela época o povo usava o carnaval para transformar o terrível (o soberano) em espantalho.
Obtemperou Bakhtin:


[…] o riso, menos do que qualquer outra coisa, jamais poderia ser um instrumento de opressão e embrutecimento do povo. Ninguém conseguiu jamais torná-lo inteiramente oficial. Ele permaneceu sempre uma arma de libertação nas mãos do povo. Libera não apenas da censura exterior, mas antes de mais nada do grande censor interior, do medo do sagrado, da interdição autoritária, do passado, do poder […] (BAKHTIN, 1987, p. 81).


Rir é importante, é fundamental! Vamos a um show de humor onde se fala muito mal de política e damos gargalhadas, saímos de lá bem, respirando melhor, mais conscientes de nossos direitos, pensando na vida, nas injustiças, revoltados com o presidente, o governador, o prefeito, o conselho tarifário etc. Portanto, meu/minha caro(a) leitor(a), caso você exista, conclamo: vamos rir! Não tenhamos medo da morte. Façamos tudo o que quisermos. Busquemos o que Bakhtin chamou de “morte alegre”. Uma morte que quando vier encontre nosso lindo sorriso e, por isso, quede-se frustrada. Que nos leve, mas no caminho vá decepcionada por estar carregando alguém que foi deveras feliz.


Ademais, a reflexão certa para cerramos este singelo e exíguo texto, pois já está na hora de irmos sambar na avenida, é evidenciarmos que estamos todos – os acreanos, baianos, cearenses, sul-rio-grandenses, alagoanos, o presidente da República, os Senadores, os Deputados Federais, os médicos, os professores, os juristas, os pedreiros, os estudantes, as domésticas, os garis, os mendigos, enfim todos, em uma vida que, essencialmente, apresenta-se de igual modo e limitação para todos, na medida em que todos morrerão.


Desse modo, olvidando-se (e combatendo) o fato cruel de que alguns de nós temos mais capital/poder do que outros, por estarmos todos, seja quem formos, “no mesmo barco” da vida, nos divirtamos, pulemos como pipoca, cada um a seu modo, neste carnaval. Pergunto a você nobilíssimo(a) leitor(a): no fim de sua vida, o que lhe restará? Quais serão suas recordações? Alis grave nil – com asas nada é pesado. Voe. Liberte-se! Mas, também lembre-se: tudo é em vão, o futuro é a morte! Tudo é correr atrás do vento. E, como canta o seresteiro Zezo, o “Príncipe dos Teclados”: […] da vida num levo nada,…depois de fechar os olhos ninguém era ninguém […]
Não existem conclusões. Cada um recolha as suas!


* Tayson Teles é acreano, articulista, escritor, poeta.


REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. Tradução de Rosana Eichenberg. São Paulo: Cia das Letras, 2004.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara F. Vieira. São Paulo: HUCITEC, 1987.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.
SACADURA ROCHA, José Manuel de. Michel Foucault e o Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
BERNARDI, Rosse Marye. Rabelais e a sensação carnavalesca do mundo. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2015, p. 73-93.

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