Menu

Pesquisar
Close this search box.

FRATERNIDADE ECOLÓGICA

Receba notícias do Acre gratuitamente no WhatsApp do ac24horas.​

Moises_100psxOntem assisti uma inspiradora palestra do padre Luiz Ceppi sobre a Encíclica do Papa Francisco. Laudato si (Louvado sejas), dividida em seis capítulos, trata do cuidado que o homem deve ter com o planeta e todas as suas formas de vida.


A Encíclica verde tem a sua inspiração na vida de São Francisco e o seu amor aos seres vivos mais simples, como os pássaros, e às formas de vida mais frágeis. Francisco de Assis retirava das estradas as minhocas para não seres pisadas. Fiquei ouvindo a fala ontológica do padre e pensando o quanto nos distanciamos da mãe natureza, como se estivéssemos fugindo de nós mesmos, de nossas origens.


Temos um medo abissal de olhar para as extremidades de nossos dedos e descobrir que, durante quase um século de milhões de anos, resistimos nas árvores. Nossas garras, que depois se transformaram em mãos, guardaram as marcas digitalizadas das cascas das árvores. Quando vamos retirar a nossa carteira de identidade, o nosso polegar denuncia a nossa origem ancestral e as marcas indeléveis que ficaram do tempo inestimável de nossa vida na floresta.

Anúncios


Viemos de uma resistência biológica e ecológica de milhões de anos. Nossos antepassados, esgotado o período de especiação, estão na floresta a nos lembrar que a única coisa que nos separa dos mamíferos inferiores é a palavra e o raciocínio lógico. Isso já basta para entendermos que entre nós e os mamíferos inferiores deve existir uma cumplicidade que não deixa de ser gratidão.


Além de termos vindo de lá, a partir da evolução das espécies, nos alimentamos de sua carne e de seus frutos. Mesmo os animais domesticados um dia viveram na floresta. A partir das florestas ocupamos as planícies, as cavernas. De lá retiramos as nossas primeiras ferramentas, nossos nomes e vestimentas.


À exceção do sal, tudo que que consumimos vem da floresta. Até os combustíveis fósseis são resultados de trilhões de árvores envelhecidas, apodrecidas e soterradas no quase intocável subsolo do planeta.


Tudo o que temos de mais forte e mais precioso em nossa carga biológica, genética e humana foi adquirido e aperfeiçoado na floresta. Nossas mãos retráteis nasceram do contato rústico e dolorido com as cascas das árvores. Nosso esqueleto de alta resistência e formidável elasticidade óssea foi construído entre os galhos, em nosso deslocamento arbóreo. Nossa visão estereoscópica é fruto da vivência entre as folhagens da copa das árvores.


Adquiridas essas ferramentas biológicas e esgotado o alimento em nosso nicho ecológico arbóreo, como uma espécie fugindo da extinção, descemos ao solo das imensas florestas, antes de nos aventurarmos nas planícies. Nas florestas demarcamos os nossos territórios, organizamos as nossas hordas e famílias e iniciamos o manuseio primitivo das primeiras ferramentas.


Antes de nossa espécie ter realizado a curva pré-histórica de supremacia espiritual entre si e os animais inferiores, a alma não era exclusividade do homo sapiens. Os animais da floresta, especialmente os mais fortes e os mais inteligentes, eram dotados de espírito, que orientavam ou puniam o homo erectus. O espírito do búfalo, do urso, do leopardo, da águia, da serpente ainda está guardado nas religiões animistas.


No longo período de transição entre o primata e o homem, nós vivíamos numa relação desigual com o meio ambiente e seus recursos naturais poderosos. Sofremos intempéries mortais do tempo glacial, da chuva ácida, do sol escaldante, dos vulcões, das torrentes e das tempestades. As feras da floresta nos dizimavam como formigas e nosso tempo era curto em cada território e caverna.


Então, decidimos nos vingar, nos transformamos numa força geológica. O antropoceno está matando aqueles que o criaram, como um monstro que nasce do parto de uma borboleta.


A nossa vingança se voltou contra nós mesmos e estamos a destruir as últimas reservas de água, floresta e toda a acumulação primitiva de recursos naturais. Estamos matando a nossa galinha dos ovos de ouro e sequer a maioria da população tem acesso aos ovos.


Uma minoria consome os recursos naturais, que se tornam bens sofisticados, enquanto a maioria da população do planeta não sabe o que é beber água potável ou alimentar-se três vezes ao dia. Apesar disso, o planeta está se exaurindo e deixando órfãs de seus recursos naturais as gerações do futuro.


No decorrer dos séculos, com o avanço da tecnologia, perdemos a cumplicidade entre o ser humano e o espaço verde que nos criou e ainda nos alimenta. Os homens que dirigem o planeta são os antigos mamíferos que se tornaram lobos do semelhante. Eles cuidam de sua alcateia, de sua minoria, a controlar e consumir os recursos naturais com cérebro de lobo e estômago de lagarta.


Talvez uma maldição biológica explique a nossa vingança. Nossos genes são quase iguais aos genes dos ratos. Quanto aos macacos somos mais semelhantes, além dos genes, da herança do esqueleto, da fisiologia, da fisionomia e das digitais. Somos descendentes próximos dos macacos e parentes distantes dos anjos.


Durante setenta milhões de anos vivemos nas florestas. Quanto à vida humana nas cidades, ainda não completou meio milhão de anos. E por que tanto desamor aos recursos naturais? Por que tanta indiferença às formas de vida indefesa das florestas e das águas?

Anúncios


Dentre os animais nós somos os únicos capazes de envenenar a própria água que bebemos, de matar um ser vivo sem ter a necessidade de comê-lo para saciar a fome, de escravizar o semelhante, de torturá-lo. Contraditoriamente, somos os únicos que têm alma e, se não bastasse, somos os únicos seres vivos que rezam.


A verdade é que toda a nossa ferocidade ancestral e os nossos instintos mais primitivos foram organizados em leis, em códigos canônicos e em convenções sociais. O presídio de hoje é a árvore oposta que abrigava a família de símios que queria roubar os meus frutos. A civilização é uma pele humana que cobre a nossa animalidade ancestral.


Talvez, por isso, não consigamos olhar com fraternidade para as formas de vida que não riem, não torturam, não matam a si mesmas, não rezam, não escravizam. Felizmente, estamos entre as espécies que perdoam.


Por isso, a nossa aposta na espécie humana, na sua capacidade de transformar lixo em arte, de recuperar os rios, de reciclar sua urina, de fazer de um grito uma música, de transformar o desejo mais simples em utopia e de, finalmente, perceber a dimensão da dor nas formas de vida que não fazem parte da civilização.


Moisés Diniz é membro da Academia Acreana de Letras e autor do livro O Santo de Deus.


 


 


INSCREVER-SE

Quero receber por e-mail as últimas notícias mais importantes do ac24horas.com.

* Campo requerido